Capitu é uma minissérie dividida em cinco capítulos e exibida na Rede Globo na faixa das 23 horas em Dezembro de 2008. Dirigido por Luiz Fernando Carvalho, o seriado é baseado na obra do escritor Machado de Assis: Dom Casmurro. Semelhante ao livro, o romance é dividido em três partes narrativas: A juventude e ascensão do relacionamento amoroso entre os protagonistas, a vida de casado e o ciúme doentio e, por fim, a decadência melancólica da velhice. A história da série é narrada por um já velho Bento Santiago, (conhecido como Bentinho e, posteriormente, apelidado de Dom Casmurro) que relembra sua juventude como um adolescente apaixonado perdidamente por sua vizinha Capitolina, a quem chamava de Capitu.
Atenção, spoilers à vista! Órfão de pai e pertencente à elite brasileira no Rio de Janeiro do século XIX, Bentinho vivia com sua mãe, Dona Glória, seu tio Cosme, sua prima Justina e o “agregado” José Dias, que o orientava diante de suas grandes decisões. Os Santiagos ficam mais próximos dos pais de Capitu quando estes perdem a casa em uma enchente e são ajudados por Dona Glória.
Sentenciado ao celibato religioso por uma promessa materna sofre com a ideia de não se casar com Capitu. Ele implora à família para ficar em casa, mas acaba sendo enviado para um seminário. Lá, conhece Escobar, um menino audacioso que se torna seu melhor amigo e o ajuda a se livrar de seu futuro na Igreja com a bênção do padre Cabral, professor de latim e ensino religioso de Bentinho desde criança.
Cinco anos se passam e Bentinho, agora formado em direito em São Paulo, retorna ao Rio de Janeiro e casa-se com seu grande amor. Já Escobar, vira comerciante e marido de uma amiga de infância de Capitu, Sancha. Apesar da grande amizade e intimidade entre os casais, os ciúmes de Bentinho crescem e beiram à loucura, a ponto de desconfiar que seu filho Ezequiel seja fruto de uma traição de Capitu com Escobar. Cisma que vê características do amigo no próprio filho e passa a nutrir uma profunda rejeição pelo menino.
A confirmação, aos olhos do protagonista, surge quando Escobar morre afogado na Praia do Flamengo e, em seu enterro, flagra um olhar de Capitu fixo no cadáver, com os olhos marejados. Aquilo foi o bastante para a desconfiança do marido ganhar mais certeza do que nunca.
O casamento termina em divórcio. Capitu pega o filho e se muda para a Europa, onde acaba morrendo anos mais tarde. Após a morte da mãe, Ezequiel passa um tempo com seu pai antes de viajar para Jerusalém. Onze meses depois, morre de febre tifóide. Bentinho, por sua vez, fica aliviado por nunca mais ter que olhar para o fantasma de Escobar nos olhos do filho. O livro e a série terminam com o protagonista, agora chamado de Dom Casmurro por ser recluso e calado, acreditando firmemente na traição de Capitu.
Em termos do que chamo de estilo machadiano, Machado de Assis era um grande precursor do Realismo, um escritor pessimista e um exibidor da hipocrisia social. Apurou sua análise da sociedade brasileira com os anos e atingiu sua condição superiormente irônica, crítica, cética, atemporal e radicalmente humana. Suas obras são estruturadas com frases curtas e certeiras de fácil entendimento e perfeição gramatical. Apresenta frequente uso da metalinguagem e intertextualidade e não utiliza uma ordem cronológica em suas histórias. Com muita ironia e humor, porém com uma carga intensa de reflexão e crítica ácida em suas raízes, aborda sempre a classe dominante de sua época: a burguesia.
A adaptação para a televisão manteve os toques machadianos, mas assumiu uma postura mais tragicômica, como um teatro encenado e narrado por Bentinho. Mesmo com seus momentos cômicos e teatrais, Capitu é uma minissérie de drama que, por sua vez, apresenta um homem comum com problemas comuns que reflete as emoções e sentimentos humanos. Expõe inseguranças com a verdade, mesmo que seja uma representação da realidade. No caso de Bentinho, ele já passou por seu momento crucial e o está revivendo, fazendo com que o público sinta tudo o que ele já sentiu.
No drama, o protagonista é o seu pior inimigo. Bentinho é exatamente isso ao se deixar corromper por seu ciúme doentio e sua paranoia e perder tudo que mais amava na vida. No gênero drama, é comum uma similaridade com a tragédia grega, em que o sofrimento serve para que o protagonista aprenda uma lição de vida e até mesmo uma chance de redenção. Capitu, assim como no livro, quebra essa expectativa, pois o protagonista já está mais velho e amargo, revivendo sua jornada do herói distorcida, sem possibilidades para mudanças. Como em toda obra machadiana, a melancolia e o final agridoce são partes da estrutura do plot, assim como na construção dos personagens.
Bento Santiago ou Dom Casmurro, pode ser visto como o herói tragicômico. Protagonista e narrador do livro e da série, Bentinho era rodeado por temas como traição, ciúme, ambiguidade, feminilidade, amor, maternidade e dúvida. Sonhador, sentimental, sensível, medroso, paranoico, hipocondríaco e influenciável, são alguns adjetivos que definem bem sua personalidade. Posteriormente, descobre-se que a desconfiança, o ciúme doentio e a fúria eram partes ocultas que aumentavam rapidamente em determinadas situações. No fim, o rancor era tudo o que tinha restado.
De fato, trata-se de um protagonista ambíguo, mas que não deixa de ser um herói cômico, pois lhe falta a coragem de assumir seus erros, desde criança. Em sua visão, ele é o herói injustiçado de sua história, levado pelas situações e buscando seu final feliz por entre os problemas que encontra. Como Dom Casmurro, não mais participa e sim, observa seu passado com ironia e crítica ácida. Um personagem complexo que pode ser visto tanto como herói quanto o anti-herói que pode ter tido como obstáculo a si próprio. Em algumas análises literárias, Bentinho pode ser considerado o protagonista mais antagonista da literatura. A minissérie mantém este status.
No caso das personagens femininas em obras machadianas elas são, em sua grande maioria, apresentadas ao público como sensuais, ambíguas, astutas, dominadoras e até mesmo adúlteras. Mesmo que tais adjetivos pareçam uma crítica e até mesmo certo machismo por parte do autor, no caso de Dom Casmurro, são encarados como um elogio à inteligência feminina, capazes de conseguirem tudo o que desejam.
Com Capitolina, não poderia ser diferente. Ela é descrita como uma menina de 14 anos com aparência de 17. Uma cigana oblíqua e dissimulada com olhos de ressaca como o mar e uma atitude semelhante a um felino. Todas essas características são apresentadas pela narração de Bentinho, que exagerava nos traços que mais lhe chamavam a atenção. Ele a enxerga como uma moça sensual e fascinante.
Ousada, decidida e segura de si, Capitu era a mais pé no chão do casal, a que impulsionava as atitudes de Bentinho e aquela que tanto permaneceu na mente do narrador. Ela quem armava os planos para retirar Bentinho do seminário e era esperta o suficiente para cair nas graças da futura sogra. Na segunda fase, porém, Bentinho passa a ter uma crescente desconfiança de Capitu e isto reflete na forma com que a personagem passa a ser vista. Agora é dissimulada, mentirosa e manipuladora, a vilã que destruiu a vida de Bentinho e foi sua maior desilusão. Capitu é, simultaneamente, um objeto de desejo e uma antagonista. E por falar em antagonistas, Ezequiel de Souza Escobar é visto pela primeira vez como um dos integrantes do seminário e, posteriormente, amigo íntimo de Bentinho e suposto amante de Capitu. Ao som de “Iron Man” da banda Black Sabbath, ele tem uma entrada bem impactante e simbólica na série, assim como sua música tema.
Pode ser interpretado até mesmo como possuidor de um comportamento animalesco, um rapaz rebelde, esbelto, astuto e muito sedutor. Seus olhos, assim como são claros como as águas do mar (onde, ironicamente se afoga anos mais tarde) e descritos pelo narrador como um pouco fugitivos. Era muito simples e extremamente atlético. Quando cresceram, Escobar seguiu seus impulsos, desistiu do seminário e se tornou comerciante de café. Sua vida prosperava em contrapartida à inveja e aos ciúmes de seu amigo. Ele deixa de ser o melhor amigo do protagonista e vira o vilão que o enganou junto com Capitu. Aquele que assombra Bentinho mesmo depois de morto.
Já José Dias é o antagonista trickster, um agregado da família de Bentinho. Conheceu o pai de Bentinho na fazenda ao se apresentar como médico homeopata. Curou uma escrava e recusou pagamento. Dona Glória então ofereceu que ele ficasse morando com eles e assim permaneceu. Magro, com princípio de calvície e com cinquenta e cinco anos, é um personagem caricato com gestos exagerados e fala com excesso de superlativos. Um sanguessuga que vive com o dinheiro dos outros, mas que sabe como se fazer necessário, de forma que é amado por todos como se fosse um membro da família. Muito estratégico e puxava o saco das pessoas certas. Faz o tipo “malandro carioca”, que não trabalha e sabe se safar das situações com a lábia. Uma crítica de Machado ao que julgam ser o “jeitinho brasileiro”.
José Dias é visto por Bentinho em um primeiro momento como um antagonista, aquele que lembra sua mãe da promessa de enviá-lo ao seminário para ser padre e separá-lo de Capitu. Depois do plano da menina para convencê-lo a ajudar Bentinho, José Dias vê interesse na ideia e torna-se o maior aliado do casal. A partir deste momento, Bentinho não mais o enxerga como um vilão e sim como uma pessoa de confiança, algo que se mantém na segunda fase do narrador, agora já adulto. José Dias é dúbio e caricato, e está onde lhe convém, tal qual um trickster.
Por fim, os personagens secundários também merecem uma menção honrosa. Dona Glória é a personificação do arquétipo teatral do inocente. Uma mãe zelosa, viúva e cristã devota. Caridosa com aqueles que a procuravam em busca de ajuda financeira, nunca percebia como José Dias a manipulava ou como Capitu era ardilosa para ganhar sua confiança.
No papel de “o tolo” temos Tio Cosme. Também viúvo, morava com a irmã e tinha um escritório onde trabalhava como advogado. “Boa-vida” que engordou na velhice e tinha saúde fraca. Funciona mais como um alívio cômico e ingênuo, em contrapartida de Prima Justina, a 'voz da razão'. Observadora, gostava de criticar o comportamento dos outros e apontar defeitos. Ela sempre foi a única da família de Bentinho que enxergava todas as situações como eram, porém por ser muito religiosa, Bentinho não lhe dava ouvidos.
Há o contraste entre aparência X essência em todos os personagens machadianos, focando muito mais na desenvoltura interna do que em uma narrativa cheia de acontecimentos. Por esse enfoque na personalidade de cada um, eles são ambíguos, não pertencentes a uma categoria específica e mudando de papéis segundo a visão de Bentinho sobre eles ao longo da narrativa. Em Dom Casmurro, como na maioria de suas obras, Machado de Assis brinca com arquétipos e escreve verdadeiros camaleões em suas tramas.