Há alguns dias construí a oportunidade para ir ao cinema e assistir Ainda estou aqui. Havia tentado anteriormente sem êxito: as vezes o horário da sessão não era adequado à minha agenda; em outras havia dificuldade em encontrar companhia. Sem planejamento prévio, durante uma troca de mensagens por meio de um aplicativo, a oportunidade se deu.

Foi uma experiência interessante: primeira vez que assistia um filme brasileiro em um cinema de outro país (sorte a nossa que o filme estava apenas legendado!). Era um misto de orgulho, com nostalgia. Orgulho, pois sabemos o quão difícil é a inserção de obras cinematográficas brasileiras em outras terras. Nostalgia, não apenas pelas paisagens e costumes brasileiros tão bem retratados, mas também pelos momentos vivenciados com familiares e amigos outrora tão próximos, agora geograficamente distantes e longínquos na escala temporal.

Sou uma paulista afortunada que pôde passar todos os verões da infância e juventude na casa familiar do litoral, de modo que as belas cenas praieiras e cotidianas exibidas no filme, ecoavam em minha alma. São várias as histórias vividas a beira mar que posso recordar: jogos de rouba-bandeira, aulas abertas de aeróbica, passeios de bicicleta, amizades, ilusões e desilusões. Verdadeiras cenas de filmes.

Fiquei intrigada com o fato de que uma história densa e política tenha desencadeado minhas memórias afetivas mais próximas do coração. Fui ao cinema preparada para ter uma reflexão racional, permeada por meus interesses sociológicos e históricos, uma compreensão de que conhecer o passado é a melhor forma de entender o presente e construir o futuro.

Quiçá, justamente por meu interesse e conhecimento sobre os acontecimentos durante a ditadura militar brasileira, o filme não tenha me instigado a refletir sobre estes históricos acontecimentos. Talvez o objetivo do Marcelo Paiva, ao escrever tão bela história, fosse justamente relatar as sutilezas diárias, ricas e complexas, que permeiam nossas vidas quase sempre passando desapercebidas, mas que foram usurpadas de sua vida pela violenta ditadura militar passada naquele período.

Acredito que esse filme nos ajude a recordar que, nestes tempos líquidos, onde cada conquista é mensurada pela quantidade de curtidas por nós obtidas, durando apenas o necessário para possibilitar a próxima postagem, esquecemo-nos de experimentar cada instante em sua real impermanência e exclusividade: nada jamais se repete. A família Paiva nunca mais pôde usufruir dos encontros entre amigos e familiares, dos almoços, jogos e brincadeiras na praia como o costumava vivenciar antes do sequestro de Rubens. Uma família foi destruída; uma esposa ficou sem estado civil definido; filhas e filho ficaram sem pai. As tardes de domingo, bem como as manhãs de qualquer outro dia não voltaram a ser como eram.

O autor de tamanha violência à essa família - uma das mais sagradas instituições da cultura brasileira – foi o Estado Militar. O Estado, esse que deveria governar em prol do povo, desmantelou essa e tantas outras famílias. E, engana-se quem pensa que saiu ileso da vivência da ditadura militar: a censura sobre os conteúdos e o controle dos currículos escolares são apenas exemplos de ações militares que afetaram à toda população brasileira naquele período. O controle sobre a educação, naquele período, visava restringir ações educativas que possibilitassem o desenvolvimento do pensamento crítico nos estudantes.

Os conteúdos e as metodologias de ensino eram planejados de modo a estimular as crianças e adolescentes a desenvolverem uma percepção favorável ao regime militar. Os efeitos dessa educação militar, na qual os estudantes recebiam informações e eram treinados a repeti-las sem criticidade, ainda persistem, dado que a minha geração e a geração de meus pais frequentaram os bancos escolares sob o controle da ditadura militar.

E, não mais que de repente, percebi que o filme Ainda estou aqui me instigou a refletir sobre os aspectos políticos, históricos e sociológicos relativos a ditadura militar. Ainda surpreendida pelas reflexões desencadeadas pelo filme, me dou conta de que há uma dimensão em nossas vidas que pode ser afetada pelos governos ditatoriais que eu, em minha vasta ignorância, não havia considerado: o maior problema de um governo antidemocrático é a perda da autenticidade cotidiana vivenciada por cada um de nós. É a limitação de nossa interação com a vida e com as pessoas. O empobrecimento da variedade cultural, o uniformizar de ações e sentimentos, o desligamento do eu, ser único em minhas complexidades. É a padronização coletiva que anula as individualidades.

Mais do que parabenizar a equipe do filme pelos importantes prêmios recebidos, quero expressar minha imensa gratidão:

Obrigada, Marcelo Rubens Paiva por compartilhar tão íntima e poderosa história: real, pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva, dado sua abrangência nacional. Obrigada Meirelles por apresentar essa obra de arte tão sutil e, paradoxalmente, tão complexa. Obrigada Fernanda Torres por mostrar seus sentimentos sem falas, por meio de pequenas movimentações faciais, que nos fazia sentir o turbilhão emotivo vivenciado pela Eunice. E, obrigada Fernanda Montenegro por evidenciar que o sentido da vida nunca é esquecido, mesmo quando aparentemente as luzes já se apagaram.