Autobiografias são perigosas. Namoram autoenganos. Eliminam traços essenciais. Focam no mapa e ignoram o território. Sucumbem a sombras. E, por conseguinte, valorizam apenas o trivial.
Ciente disso, eu poderia autobiograficamente começar discretamente dizendo que ultimamente tenho sido doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados. Seria justo. Mas seria uma clara fuga.
Ninguém se esgota em títulos e patentes. A não ser que sua vida seja apenas títulos e patentes. Por não ser o meu caso, eu poderia complementar o meu autorrelato informando que tenho tido a honra e o privilégio de escrever e ser publicado em vários lugares no Brasil e no estrangeiro. Dos espaços mais politizados como o GGN – O jornal de todos os Brasis e A terra é redonda, passando pelo prestigioso Instituto Humanitas da Unisinos (IHU) e pela concorridíssima Latinamérica21, ancorando esporadicamente em Velho General para tratar de assuntos militares e chegando ao querido Jornal da USP onde alimento livremente toda sorte de assuntos carrancudos que outros destinos estranhariam publicar.
Malgrado essa adição, eu seguiria em fuga. Da mesma forma que eu continuaria fugindo se acrescentasse que nos últimos vinte anos escrevi alguns livros, publiquei vários trabalhos acadêmicos e tenho me dedicado a temas quentes e frios de História, Política, Economia, Segurança e Relações Internacionais de Brasil, França, América do Sul e União Europeia. Tudo verdade. Mas tudo em máscaras.
Para me lançar ao espelho e deixar de fugir, preciso iniciar reconhecendo que o território, com o que [acho que] sou e faço, vai espelhado nos olhos uma maltês peludinha, de pelo branquinho feito neve, com não mais que três palmos de comprimento, dez dedos de altura, quatro quilos de pesagem e que atende por Nina. Nina, lindinha. Meu primor.
Tem um par de anos que esse serzinho ingressou em meus caminhos e passou a me revelar muitas coisas sobre mim. Mirando os seus olhos, retraço passados, retorno aos começos e até projeto recomeços. Revejo casas antigas – velhas e novas, pobres e fartas – em capitais e interiores de vários estados do Brasil. Rememoro, com isso, a minha infância. Girando mundo. E relembro que os meus pais que viviam assim.
Depois daí, jovem e adulto, foi a minha vez de seguir seus passos. Agora sozinho. Andando por aí. Fazendo assim, nenhuma região do Brasil – Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste – passou indiferente aos meus pés. Morei ou passei ou sonhei em todas essas partes e guardo afetos variados de tudo que vivi.
Contente, mas não completo, atravessei o Atlântico. Fui especialmente à Europa Ocidental. Passei por vários países. Aprendi seus idiomas. Sorvi a sua cultura. Li e reli a sua literatura. Provei do seu cinema. Apreciei a sua culinária. Respirei as suas flores. Cultivei os seus pintores. E afirmei na alteridade um valor. Não sei se universal. Mas um valor.
Foi bom. Foi assim. E nisso – lá e cá – me forjei. Nina sabe e eu sei.
Quando me propuseram um espaço nesta fantástica e planetária revista Meer, deixaram-me livre para fazer a minha pauta. E assim o farei. Mas da forma como em nenhum outro lugar fiz nem faço. Aqui serei mais intimista e escreverei todos os textos de braço com a Nina. E, quem sabe, sendo mais Nina que eu.
Desse modo, vou falar, sim, de política, diplomacia, economia e cultura. Mas sempre embalado pelos vários cheiros, sabores, olhares, frescores, calores, memórias, sensações e lugares que vivem em mim. Espero que apreciem.