Aqueles dias do 9 ao 12 de novembro de 1970 anunciaram o fim de muitos períodos. A morte do general Charles de Gaulle marcou gerações inteiras na França, na Europa e no mundo. Desde a tarde do 9 de novembro que a notícia ia se espalhando por todas as partes. Nenhum mandatário, nenhuma autoridade e nenhuma pessoa minimamente informada e sensível aos eventos mundiais passou indiferente ao acontecimento. Era o último gigante entre os gigantes daquele século que dava o seu adeus – Josef Stálin nem Winston Churchill causaram tamanha comoção ao partirem em 1953 e 1965 respectivamente. Lideranças do mundo inteiro, porquanto, interromperam os seus afazeres para se render em pessoa a Paris para ofertar as suas últimas condolências ao general francês que presidira a França de 1958 a 1969.

Mais de 80 chefes de estado ou de governo compareceram ao ofício religioso executado na catedral Notre-Dame de Paris. O presidente norte-americano Richard Nixon. O primeiro-secretário soviético Nikolaï Podgorny. O xá o Irã Reza Pahlevi. O primeiro-ministro britânico Anthony Eden e seu antecessor Harold Wilson. O presidente do Senegal Léopold Sedar Senghor. O presidente da Finlândia Urho Kekkonen. O príncipe Charles representando Sua Majestade, a rainha Elisabeth. A rainha Juliana dos Países Baixos. O imperador da Etiópia Haile Selassié. O irmão do imperador Hussein da Jordânia.

Dezenas de personalidades como o artífice do estado de Israel David Ben-Gurion. Dezenas a centenas de companheiros da liberação francesa de 1944. Oficiais da Legião de Honra e heróis da resistência. Todo o corpo diplomático estacionado em Paris. Todos os integrantes de corpos burocráticos intermediários. Toda a classe política francesa representada pelo presidente George Pompidou e por personalidades como André Malraux, Alain Peyreffite, Jacques Chaban-Delmas, Valéry Giscard d’Estaing, Edgar Faure e outros. Centenas a milhares a dezenas de milhares de pessoas anônimas vindas de toda Paris, toda França, toda Europa e de todos os continentes para ofertar a sua última homenagem.

O cardeal François Marty, em obediência aos desígnios do general, proferiu uma missa simples e baseada no Evangelho de João. Um silêncio penetrante tomava conta de todos os interiores da faustosa Notre-Dame de Paris. Até seus vitrais pareciam meditar. Entidades ortodoxas, islamistas e israelitas marcaram a sua presença e um coral plural finalizou o ofício com peças de Johann Sebastian Bach. O aeroporto de Orly suspendeu o seu funcionamento no horário a partir das 11h, horário da missa. Todo o transporte público em comum francês interrompeu as suas operações por um minuto pontualmente às 12h. Floristas de todas as partes se viram abarrotados de demandas que chegavam do mundo inteiro. Estados Unidos da América, Grécia, Vietnã, Arábia Saudita. O mandatário da República Popular da China, Mao Tsé-Tung, mandou encomendar oito furgões especiais de rosas, dálias, lis, crisântemos, violetas adornadas ao estilo chinês.

Enfim.

Naqueles dias de novembro de 1970, Paris e a França voltaram a ser a capital do mundo. Feito similar havia ocorrido apenas em 1918-1919 para a assinatura dos tratados para o início da paz após a Grande Guerra de 1914-1918. Feito que teria repercussões importantes, voluntárias e involuntárias, em tudo em variados eventos internacionais adiante.

O simbolismo da morte do general foi imediatamente apreendido. Com o seu féretro, uma certa percepção do trágico na vida e do trágico na História também ia desaparecendo. Os ideais da geração baby boomer que fizera os protestos franceses de maio de 1968 pareciam vencer a batalha pela horizontalização da sociedade. Pouco a pouco, o mantra “é proibido proibir” tomou conta de todo o espectro social. O pensador Raymond Aron, diretamente implicado por esses eventos, foi o primeiro a chamar a atenção para as suas armadilhas. Em seu entendimento, aqueles protestos obliteravam os dramas das guerras totais, os extremismos geminados nos anos de 1930 e a virulência do trágico.

A efervescência da juventude francesa não tardou a influenciar movimentos similares no mundo inteiro. Notadamente nos Estados Unidos da América onde a juventude acentuou a sua condenação à participação norte-americana na Guerra do Vietnã. Essa condenação não demorou receber apoio irrestrito da opinião pública local e mundial. E, de modo objetivo, serviu de subterfúgio para o florescimento do sucesso de Richard Nixon nas presidenciais de 1968.

Aquela guerra infame drenava recursos variados e conduzia os Estados Unidos da América a crises financeiras, econômicas e sociais sem precedentes. No âmbito do processo eleitoral, o candidato Richard Nixon conseguiu convencer a população de que superaria aquela tempestade de crises.

Desse modo, tão logo eleito, ele organizaria medidas decisivas nesse propósito. A mais importante foi implementada em 1971 e resultou no fim da participação dos Estados Unidos da América no Sistema Monetário Internacional saído dos acordos de Bretton Woods. Desde então, a moeda norte-americana deixou de ser administrada por constrangimentos multilaterais que impediam a expansão monetária e a variação, acima de 1%, de taxas de juro, inflação e câmbio. O aumento do espaço monetário norte-americano – a literal impressão de moeda e ampliação do meio circulante – permitiu o reaquecimento da economia norte-americana e o início da contenção dos protestos civis que incendiavam todo o país.

A normalização das relações com a China e a conclusão de acordos de limitação de armamentos estratégicos, SALT I, com a URSS foram as outras medidas importantes e decisivas do novo presidente norte-americano. Sobre o espalho europeu, essas medidas permitiram ao chanceler alemão Willy Brandt a iniciar a sua Ostpolitik: uma aproximação das duas partes da Alemanha com a URSS. Os desdobramentos dessa aproximação provocariam diversas mutações nos comunismos praticados na Europa Oriental. Especialmente na Polônia e na Iugoslávia.

Logo em seguida, nos anos de 1973 a 1975, essas novas paisagens internacionais vão inaugurar uma nova fase da Guerra Fria. Os escândalos do Watergate enfraquecem o presidente norte-americano. A Guerra do Yom Kippour interioriza preocupações mundiais no Oriente Médio. A emergência de Gerald Ford à presidência norte-americana trouxe consigo as revelações da participação dos Estados Unidos da América no regime change no Chile. A situação no Vietnã continuava instável e complexa.

A Conferência de Helsinki, para deliberações sobre segurança e cooperação no espaço europeu, chegava a conclusões desvantajosas para europeus e norte-americanos. A aceleração dos processos de descolonização da África e da Ásia começava a dar mostras de fadiga. O caso português indicava a mostra da complexidade do processo assim como as duras verdades sobre o choque da descolonização. Aliado a tudo isso, ocorria o primeiro choque de petróleo com repercussões deletérias em todas as partes do mundo.

Os anos de 1978 a 1982 agravaram todas essas tensões preexistentes. As crises maiores no Irã, no Afeganistão e na Polônia marcaram o momento. A fragilidade da presidência de Jimmy Carter facilitou a emergência de uma ala republicana ultraconservadora liderada pelo presidente Ronald Reagan. Do outro lado do Atlântico, em 1979, Margaret Thatcher foi eleita primeiro-ministro e, em 1982, Helmut Kohl passou a chanceler da Alemanha. A vitória do socialista François Mitterrand na França portou um simbolismo importante para segmentos progressistas mundo afora. Mas apenas isso: um simbolismo. O mundo que rendeu condolências ao general Charles de Gaulle em novembro de 1970 tinha se transformado completamente. Era, inegavelmente, mais instável, mais complexo e mais dinâmico.