O senso comum de grande parte da população, principalmente entre as pessoas mais escolarizadas, enfatiza que o dever moral costuma ser mais importante do que a simples devoção ao rituais da religião organizada, só ir à igreja sem ser uma pessoa digna não parece ser o bastante, e um “vilão” comum do imaginário é do hipócrita religioso. Essa mentalidade moderna está ligada a visão de mundo secular que separa o mundo espiritual do mundo humano, como campos separados.
O secularismo foi um dos grandes movimentos intelectuais da modernidade, de fato a civilização contemporânea é a primeira cultura na história que não se baseia na religião para conseguir legitimidade. Mas, ao contrário do que a maior parte pensa, o secularismo não surgiu dissociado da religião, ele foi antes de tudo uma ideia que evoluiu se desdobrando da religião cristã e seus constantes atritos com os governos civis em que vivia em simbiose.
A igreja cristã se originou como uma organização rebelde dentro do império romano, enquanto a elite romana formava uma ditadura militar tirânica, os padres da igreja eram uma comunidade igualitária que fazia gestos de caridade para a população e tinha ideias religiosas opostas ao do culto imperial, que dizia ser o império imoral. A famosa frase de Jesus sobre dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, tinha um significado político: a rebelião armada era inadequada mas, como o verdadeiro poder vem de Deus, o governo de César não é realmente legítimo e não há muita autoridade para conferir a ele.
Após a adoção da igreja pelo imperador Constantino a relação entre as duas instituições melhorou, ambos se aproximaram, mas os império começou a usar a igreja como instrumento político para arrebanhar as massas, o imperador detinha na prática uma autoridade superior sobre a igreja e intervinha nela mesmo para nomear bispos e patriarcas. Quando Roma caiu para os bárbaros, o papel de Roma passou para Bizâncio que detinha os fragmentos sobreviventes do império, mas os Bispos de Roma não aceitavam tão passivamente a subordinação.
Vários atritos entre Papa e Imperador começaram a se desenvolver com a igreja da Itália crescendo cada vez mais distante dos governantes gregos. Finalmente o Papa Gelásio promulgou dos “dois poderes”, segundo a doutrina, o religiosos (chamado auctoritas) era superior ao secular (potestas) pois lidava com as questões espirituais, mas se dobra ao segundo nas questões política, ainda que sejam poderes distintoss. Gelásio estava ao mesmo tempo tentando se estabelecer como governante supremo da igreja contra outros bispos, (principalmente o patriarca de bizâncio que o desafiava pela supremacia) e mostrar que era livre do imperador ainda que reconhecesse sua força militar.
Não confiando nos imperadores bizantinos, os bispos de Roma se aproximaram de uma da tribos bárbaras do ocidente para ter um aliado político, essa era a tribo dos francos (ancestrais dos franceses e alemães). Pelos anos seguintes a aliança prosperou pois os francos possuíam o poder militar, e a igreja o conhecimento e a cultura ideais para governarem juntos. Várias campanhas militares seguidas das pregações cristãs construíram um império que ambos viam como sucessor do império romano. O auge do poder foi quando o rei franco Carlos Magno foi coroado imperador em Roma no Natal. Ainda que tenha sido um feito marcante, tornou a divisão irreversível, a igreja se dividiu entre a católica centrada em Roma e a ortodoxa centrada na Grécia.
Após a morte de Carlos Magno, o império criado por ele foi se desintegrando, ainda que monarcas poderosos conseguissem manter o poder, o império estava se enfraquecendo, a igreja que antes concordava em jogar o segundo poder para os imperadores começou a buscar cada vez mais independência e agir como uma força política por conta própria. Os conflitos entre papa e imperadores foram se tornando cada vez mais frequentes, chegando várias vezes a ser o centro dos conflitos políticos da Europa, o que começou a alimentar a percepção de que um único homem não devia possuir os dois poderes ao mesmo tempo nem ter o controle de todo o governo (um começo da visão moderna).
Ainda assim a força da Igreja era cada vez maior, o que a permitiu atuar como árbitro nas relações europeias. Durante o período medieval, não existia a percepção de que seriam vários países distintos, mas sim uma única comunidade “A República cristã” sob a liderança do Papa e sob a proteção do Imperador. Os pontífices cada vez mais poderosos defendiam doutrinas como a do “Sol e da Lua” ou a das “Duas espadas” segundo as quais a igreja era a legitima governante do mundo cristão e os monarcas e nobres eram seus encarregados de administrá-la e recebiam seu poder da igreja como representante de Deus.
O poder que a Igreja conquistou obviamente não iria durar para sempre, e com o tempo os reis da Europa foram centralizando o governo em suas mãos e contratando intelectuais que fossem leais a eles e não ao papa para administrar seus reinos. O mesmo princípio de separação de poderes que a igreja usou para se ver livre dos imperadores agora era usado contra ela pelos monarcas para se libertarem de seu poder religioso.
Vários reis empregaram alguns dos primeiros autores humanistas como conselheiros ou propagandistas, esses autores falavam ao público amplo, não só aos padres, mas também aos nobres que soubessem ler. Um desses autores foi Dante Alighieri que defendia que enquanto o Papa era soberano no espiritual, o terreno era de posse do imperador, que possuía a missão de criar um mundo perfeito e governar como um rei-filosofo.
Os monarcas absolutistas que apareciam na Europa tomaram para o estado funções sociais que antes haviam sido relegadas à igreja, como instituir regras dentro da comunidade. A noção de uma “república cristã” começou a desaparecer, os povos se identificavam como súditos dos seus reis. A mentalidade de que servir a seu reino era ainda mais importante do que servir na igreja começou a crescer.
A chegada da reforma abriu mais ainda a distância entre a igreja e poder secular. Os reis do sul da Europa que já haviam alcançado a paz com Roma não buscavam a separação, mas o reinos do norte, em sua luta para se tornarem governantes absolutistas seculares foram atraídos pela mensagem de Lutero. O padre alemão pregava a doutrina da mão direita e da mão esquerda para salientar a separação entre estado e igreja, deixando claro que o rei tinha direito de fazer tudo exceto controlar o púlpito.
Outros reformadores foram ainda mais longe. Mais do que uma mudança teológica, a reforma protestante foi um movimento de independência política contra um poder imperial enfraquecido. Lutero não era muito revolucionário e apoiou a monarquia absolutista, mas outros teólogos eram mais radicais. Calvino preferia o governo eletivo, tanto no estado quanto na igreja, não aprovando o mandato monárquico, fosse dos bispos ou dos reis, ainda instituiu que o governo tirânico dava a seus súditos o direito de rebeldia.
O discípulo de Calvino, John Knox iria um passo além. Para ele, mais do que direito, um cristão vivendo sob um governo tirânico tinha o dever de se rebelar, antes se entendia que apenas o Papa podia derrubar um rei que não seguiu os ideais cristãos. Os protestantes enxergavam as monarquias católicas do sul da Europa como governos tirânicos e hereges, contra os quais tinham que se rebelar para construir uma comunidade verdadeiramente cristã. Grande parte das guerras religiosas do começo da era moderna foram também guerras para criar um formato de governo.
O ideal protestante de “só a fé, só as escrituras” tinha consequências que mesmo seus criadores não previram, se antes a igreja era autoridade suprema, agora se estava estabelecendo o precedente para que a consciência individual fosse o árbitro da moralidade e da verdade. Tanto Lutero quanto Calvino abominavam a liberdade religiosa, ainda que fossem rebeldes, queriam que suas comunidades fossem completamente obedientes ao dogma.
O primeiro Teólogo a defender a liberdade de consciência foi o espanhol Miguel Servet, como outros reformadores ele buscava corrigir a igreja cristã, mas seu projeto era mais ambicioso pois acreditava que mesmo ideias centrais da cristandade deviam ser questionadas, Servet declarou que a doutrina da “Santíssima Trindade” era falha, algo que tanto protestantes quanto católicos foram unânimes em condenar. Tendo que fugir de todos, Servet acabou sendo capturado por Calvino ao passar por Genebra e executado.
Ainda que o teólogo espanhol tenha sido morto, seus ideias não foram esquecidas, outros doutores das novas igrejas também buscaram um maior espaço de diálogo. Entre as vertentes mais conciliadoras se encontravam os Socianos da Polônia, que acreditavam em uma religião interpretada pela razão e que nenhuma igreja tinha o monopólio da verdade, pregavam uma maior separação entre igreja e estado além de liberdade de culto. Acabaram sendo perseguidos pelos católicos e expulsos do país.
Do mesmo modo, na Holanda calvinista, a igreja reformada começou eventualmente a sofrer a oposição de uma nova crença, o arminianismo, mais moderada que as doutrinas de Calvino sobre predestinação, e preferindo a liberdade religiosa e a paz com os católicos do Sul da Europa. Ambos arminianos e socianos agora pressionavam para um ambiente mais tolerante entre as várias denominações que competiam pelos fiéis no cada vez mais fragmentado Norte europeu.
Tornava-se cada vez mais óbvio que não seria possível para um único credo unificar a Europa, logo restava então criar uma sociedade que não fosse regida por nenhuma denominação, mas que seguisse os princípios éticos cristãos básicos com os quais todas elas concordavam e achavam evidentes e inegáveis. Talvez os rituais e a hierarquia eclesiásticas não fossem tão importantes quanto seguir a ética religiosa, só isso já formaria um bom cristão.
O jurista Hugo Grotius foi um dos que ajudaram a construir esse ideal, ao criar suas obras sobre direito internacional tinha que considerar as diferenças entre todos os governos rivais da Europa e como elaborar noções aceitáveis para eles, fossem os reinos católicos do Sul, os protestantes do norte, a Rússia ortodoxa no Leste e até mesmo a Turquia muçulmana na Europa oriental.
O local que marcou a separação definitiva do político e do religioso foi a frágil igreja da Inglaterra. Ao contrário dos demais países, as ilhas britânicas possuíam uma monarquia não tão poderosa quanto seus rivais e possuíam uma igreja que, apesar de ter se separado de Roma, não tinha uma identidade nem uma teologia próprias. Para tentar conter os ânimos dissidentes no reino, a rainha Elizabete tentou criar uma organização sincrética com hierarquia católicas combinadas com teologia calvinista. Os reis ingleses esperavam usar a chamada igreja anglicana como veículo de poder para seu governo absolutista. Mas, mesmo dentro da nova fé, essa visão política não era inconteste. O teólogo Richard Hook, por exemplo, defendia o governo representativo e o direito do súdito se rebelar contra a tirania.
Não demorou muito a comunidade anglicana começou a se dividir entre a chamada alta igreja, mais próxima da herança católica e da monarquia; e a baixa igreja, que se ligava ao restante dos calvinistas e que defendia um poder limitado para os reis ingleses. A má administração dos reis após a morte de Elizabete fez com que o modelo absolutista se tornasse inviável, o que levou a uma guerra civil entre os dois lados.
A baixa igreja liderada pelos chamados puritanos (pois defendiam uma religião puramente protestante) venceu. Uma ditadura militar teocrática foi estabelecida sobre a liderança do cruel Oliver Cromwell. Apesar de seu fanatismo, Cromwell permitiu que houvesse liberdade religiosa dentro da Inglaterra entre as seitas protestantes, ainda que tenha reprimido a alta igreja e discriminado católicos. Era o começo de uma forma de liberdade religiosa ainda que imperfeita.
Após a morte de Cromwell, a monarquia foi reestabelecida e a hierarquia anglicana reconstruída com os inimigos agora sendo chamados de não-conformistas e sendo novamente malvistos mas, quando os reis ingleses tentaram se reaproximar da igreja católica (algo que todos os protestantes eram unanimemente contra) foram novamente depostos. Dessa vez, novas regras foram criadas limitando o poder do rei, que agora era obrigado a dividir o poder com o parlamento (controlado pelas grande famílias nobres e alguns comerciantes que enriqueceram) e uma da primeira medidas foi a criação do “ato de tolerância” que permitia todas as vertentes do protestantismo, mas não a igreja católica - considerada perigosa pela mentalidade da época, assim como o ateísmo e o islamismo.
A chegada da monarquia limitada na Inglaterra representou o ápice da mentalidade de criar uma comunidade de ética cristã, mas sem religião oficial. Ainda que a igreja anglicana continuasse sendo patrocinada pelo governo e ainda fosse preciso ser da igreja para fazer parte do estado, a mentalidade secular estava finalmente formada. Para superar a divisão entre os ramos da igreja, surgiu o movimento da chamada igreja ampla, segundo o qual os rituais não eram realmente tão importantes quanto ser um bom cristão, e o apego a formalidades podia levar ao fanatismo. Ser racional e honesto era mais importante do que a autoridade dos padres para determinar o que era bom e verdadeiro.
Essa nova mentalidade foi muito importante para incentivar a liberdade e a busca por conhecimento, os cristãos pela primeira vez associaram a tolerância ao progresso científico, vendo a livre discussão como um estímulo ao desenvolvimento e ao aprendizado. Intelectuais (conhecidos por iluministas), primeiro nas Ilhas Britânicas e depois no continente, começaram a defender a formação de um novo mundo movido pela razão e liberdade. Grande parte desses teóricos nem sequer davam real importância para a hierarquia eclesiástica, acreditando que Deus era um arquiteto que após gerar o mundo havia se afastado e apenas oferecido a lei natural (a moralidade) como guia para como viver honestamente, apenas seguir essa lei, já bastaria para o progresso humano.
Esses intelectuais foram chamados de deístas por sua visão mais racional e objetiva da divindade, alguns como Alexander Hamilton ainda tinham apreço pelas igrejas cristãs como estimuladoras da moralidade e da convivência civil, mas outros como Voltaire viam nelas as causadoras das guerras religiosas que tanto tinham causado sofrimento aos povos da Europa. Não demorou o para outros países buscarem, assim com a Inglaterra, seus próprio estado de liberdade e tolerância, através de um mundo secular. Ainda que tenha sido separa da política, o cristianismo deixou uma marca forte na cultura secular e ajudou a construir o mundo focado no ser humano e não no divino como é na contemporaneidade.