Entro numa livraria, no final do ano de 2023, à procura de uma boa opção de leitura para as férias. Os meus companheiros literários das últimas férias tinham sido os dois primeiros volumes de Escravidão, do Laurentino Gomes. Ainda que me faltasse o último volume da trilogia, estava com pouco apetite para dedicar à História naquelas férias, então começo a buscar outras opções em meio ao balcão dos mais vendidos.
Meus olhos se fixam num livro com o título escrito na cor laranja. Talvez sua cor fosse muito convidativa ou os demais livros me parecessem meio entediantes. Alguns com aqueles chavões estampados na capa de “como obter o sucesso” ou “chegar ao sucesso” ou qualquer coisa do gênero que normalmente vende muito prometendo entregar uma fórmula mágica para o... sucesso.
Após ser atraído pela cor laranja do seu título, observo a imagem que ilustrava a sua capa. Duas mulheres negras de mãos dadas, ambas segurando de cada lado uma espada de São Jorge, lembrando a imagem de São Cosme e São Damião. O conjunto me remete automaticamente ao sincretismo entre o Candomblé e a religião Católica. Na sequência percebo as informações “mais de 700 mil exemplares vendidos”, “vencedor dos prêmios Oceanos e Jabuti”. Penso “Uau! Um livro premiado e com boa aceitação de público! Interessante!”.
Busco e encontro o nome do autor, Itamar Vieira Junior, e concluo que não conheço. Vou até a aba da contracapa e descubro que o autor é meu conterrâneo, também soteropolitano, dez anos mais jovem, “geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA (Universidade Federal da Bahia)”. Volto para a aba da capa para entender um pouco sobre o conteúdo e me soa cativante. Opto pela compra do livro Torto Arado!
O livro em seu primeiro capítulo já me deixa aflito! Começa com uma riqueza de descrição dos detalhes em cena. Sim, em cena, pois à medida que vou lendo me dou conta que seus registros e descrições são praticamente cinematográficos. Ao longo da leitura, me pego todo o tempo imaginando a sua adaptação para um filme. Sim, aflito, pois o primeiro capítulo se inicia com um grande e angustiante sucedido que irá permear toda a vida das duas personagens principais.
Riquíssimo na explanação e desenvolvimento das personagens, mergulhamos e sentimos junto a elas, as suas emoções, seus medos, suas vitórias e suas derrotas, através de uma narrativa que muda de perspectiva à medida que muda a primeira pessoa que está narrando a história. Com surpresas de perspectivas adicionais (mas, não vou dar mais spoiler). Uma forma maravilhosa e deliciosa de desenvolver a narrativa sob cada um dos prismas envolvidos, desde o fatídico acontecimento inicial até o desfecho do livro.
Se ficássemos apenas na complexidade da história, estrutura da narrativa e personagens, o livro já seria brilhante, mas o Itamar nos entrega mais. À medida que o lemos descobrimos como diversas comunidades quilombolas foram formadas ao longo do país.
Tinha, e creio que a maioria das pessoas também o tem, uma visão simplificada e única do surgimento das comunidades quilombolas. Imaginava sempre que tinham sido criadas como consequência da fuga de escravos de alguma fazenda. Mesmo os dicionários não fogem muito desta visão. O Michaelis assim define quilombola: “Escravo refugiado em quilombo”. Com relação a quilombo, esclarece, dentre outras descrições semelhantes, “Local onde escravos fugitivos se refugiavam nas matas.”
Em Torto Arado descobrimos que essas comunidades também foram formadas via cooptação de antigos escravos pelos fazendeiros. Após a abolição da escravidão, como forma de preservar a mão de obra para a lavoura, alguns fazendeiros passaram a destinar um pedaço de terra aos antigos escravos, onde podiam cultivar seus alimentos e mesmo vender o excedente. Em troca, claro, precisavam seguir na jornada laboral normal nas terras do fazendeiro. Seguem trechos da descrição magistral do Itamar no início do capítulo Rio de Sangue:
Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar escravos de trabalhadores e moradores... Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque davam abrigo aos pretos sem casa... Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão... ‘Mas vocês precisam pagar esse pedaço de chão onde plantam seu sustento... Então vocês trabalham nas minhas roças e, com o tempo que sobrar, cuidam do que é de vocês.’
(VIEIRA JUNIOR, 2019)
Toda a descrição nos remete ao que contemporaneamente conhecemos como “trabalho análogo a escravidão”.
O surpreendente deste meu caminho até a leitura de Torto Arado? No afã de ler apenas um romance, fugindo de um livro de História (Escravidão volume 3, do Laurentino Gomes), terminei encontrando um pedaço da mesma história que talvez também seja contada no volume 3, a ver...
Claro que um livro tão prazeroso automaticamente nos leva para outro livro do mesmo autor e, então parti para Salvar o fogo. Neste também encontramos descrições cinematográficas das paisagens, início impactante e complexidade das histórias, estrutura da narrativa e personagens. A surpresa para mim foi um dos ambientes retratados. Um local que tinha conhecido há pouco tempo: o Convento de Santo Antônio do Paraguaçu. Situado no Recôncavo baiano, o local funcionou como um Noviciado da Ordem Franciscana e teve uma enorme importância para a região, sendo que atualmente é praticamente ruína.
Em Salvar o fogo, de forma sútil, Itamar vai costurando a herança do passado daquele local com o presente dos personagens. Aparentemente num período mais avançado do tempo em relação a Torto Arado, mais uma vez, conecta a história dos negros e mestiços que trabalham em um pedaço de terra, porém não tem título de propriedade e, nem mesmo sabe ao certo a razão de terem a posse daquela terra.
Influenciado por estas leituras, fui a exposição Um defeito de cor, inspirada no livro homônimo de Ana Maria Gonçalves, que se iniciou em Salvador, passou pelo Rio de Janeiro e estava em São Paulo no SESC Pinheiros. Agora preciso escolher se concluo a trilogia de Escravidão ou se parto para a leitura de Um defeito de cor.
Notas
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. I ed. São Paulo: Todavia, 2019.