Narrador — segundo andar, lado direito

Uma destas manhãs acordei com as mãos geladas, a cabeça tonta, a claridade a desfazer-se pelas persianas iluminando o cotão suspenso no quarto, o locutor na rádio a anunciar o caos no trânsito e eu a interrogar-me por que diabo estava o meu quotidiano, cada vez mais insignificante, anunciado em público.

Pisco os olhos, as pálpebras pesadas demoram a abrir, num vagar resignado que se dissolve enquanto vejo, desfocado, cenas da nossa vida enquanto ainda havia sorriso, o teu robe caído no chão à entrada do chuveiro, o gritinho que davas quando me vias de surpresa.

Preciso de acordar antes que me afogue na dor, esse mar onde a evidência do colapso tudo inunda ou então que voltes a tempo para me ensinar a nadar, como se de alguma forma isso me fosse salvar do feixe de coisas que não viveremos juntos, como um poema curto a terminar com reticências para dar ideia de que a minha vida ainda tem continuação.

O domingo caiu-me no corpo e, com ele, a neura da segunda-feira em corrida apressada, tudo se desenrolava com estranha normalidade, para além da falta de chuva e de emprego. Acabei por me levantar e decidi sair para espantar o tédio, quase depressão, que acompanha um escritor desempregado, vou até ao Centro Comercial Colombo durante a tarde, sento-me num dos vários sofás confortáveis sobre um quadrado de alcatifa e candeeiros de pé alto que dão a ilusão de estarmos em casa.

Em frente, bem no centro da Praça, uma exposição temporária da Paula Rego às moscas, alguns velhos a olhar para as pessoas carregadas de compras. Perdi ali um bom par de horas, a esvaziar a mente no movimento das compras, do absurdo, da ausência, da preguiça, mais que a preguiça, da inércia. Então, olho para o patamar de cima e reparo num homem encostado ao corrimão, que passa primeiro a perna direita e depois a esquerda e num segundo fica do lado de fora, apoiado nos calcanhares, num rebordo minúsculo onde se cravam os parafusos e com os braços esticados para trás a segurar-se no revestimento de madeira. Um par de seguranças vem a correr com o ruído dos walkie talkies, mas já não chega a tempo. O homem precipita-se no vazio, sobra o baque do impacto e, logo de seguida, os gritos de horror.

A mancha de sangue alastra pelo chão, como nos filmes, rápida a preencher o espaço junto ao que sobra da cabeça, arrastando restos de massa encefálica, tornando-se mais lenta à medida que percorre o contorno do corpo. Penso nos motivos que o terão levado ao acto, dos mais corriqueiros: dívidas, desemprego e doença, aos outros mais ficcionados, o corpo refém de uma entidade alienígena, que se alimenta do espírito e se livra do invólucro.

Imagino que podia ter sido eu a mandar-me dali para baixo, mas depois penso que corria o risco de me partir todo e continuar vivo, além disso, estava a gostar de desfrutar do conforto do sofá que vou ter que dispensar por causa do perímetro de segurança e penso no meu egoísmo ao achar que o tipo podia ter escolhido outra altura para se esborrachar, logo no único dia em que ensaiara sair de casa nos últimos dois meses.

Vou para casa e acrescento mais uns parágrafos ao manuscrito, versos, orações e o que mais possa para matar o tempo. Bendita sois vós entre as mulheres – e eu já não durmo no corpo dela faz tempo…

Mariana — primeiro andar, lado esquerdo

O filho fazia os trabalhos de casa na marquise aproveitando o reflexo da luz dos vizinhos da frente e o que sobrava do candeeiro do largo das traseiras. A fatura da luz já ia na terceira torna-viagem, no talho cortaram-lhe o fiado. O filho era aplicado e inteligente, e ela achava que a culpa era sua, que deixara o marido zarpar quando se acabou o dinheiro da indemnização e, sem corpo para trabalhar nem para anúncios de massagens por causa das dores nas costas, receava acabar como aquelas na estrada de Alfragide, por trás da cimenteira, desdentadas, com a cara vermelha da bebida, com sarna e outras coisas de pele, a aviar camionistas e bancários reformados, de cócoras, com as solas dos sapatos a saírem pelo base dos arbustos.

Ao natural eles pagavam mais.

Era mais arriscado por causa de tanta doença que por aí anda, mas necessitada que estava de dinheiro, com sorte não ligavam à cara, a maior parte deles vinha-se rápido, de olhos fechados. Mariana via-se em desespero para, pelo menos, dar um presente sem sobressaltos ao filho pois que de sonhos e futuro já abdicara, faltando-lhe o toque poético da alucinação na sua vida, acreditar que tudo não passava de um pesadelo e viver por empréstimo, a vida dos outros, aqueles a quem tudo corria bem, seguros e com um ar douto, instalado e confiante, das novelas que passavam na televisão e que ela dantes discutia com as colegas do escritório, mais certo era perder a vergonha e ir ao banco alimentar da junta de freguesia.

O antipático — segundo andar, lado esquerdo

A sua vida transformara-se numa obsessão de paixões e dor a correr no sangue, rio de cicatrizes com a felicidade a desvanecer-se de noite, no lento ronronar do frigorífico estafado pelos vinte anos de uso permanente, a lâmpada interior a tremelicar por mau contacto, a que era preciso dar umas cacetadas, com bolor entranhado nos cantos e meia cebola cortada, colocada no compartimento dos ovos para absorver os maus odores. Tirava uma ou duas fatias de presunto da embalagem de plástico e comia como um bruto. Um metro e oitenta de vontade, um monólito que gostaria que a sua existência fosse regida pelas leis da narrativa, sempre achara piada aos narradores que sabiam tudo o que ia dentro da cabeça das personagens desamparadas numa espécie de redenção, das alegrias à infelicidade com hipocrisia e ilusão à mistura, alguém que falasse por si que o livrasse de responsabilidades.

Levantou-se para ir fazer chá, mas não chegou a completar o movimento, uma dor aguda no peito, uma náusea quase tontura, mais tontura que náusea, a apanhar-lhe o parietal esquerdo, lembrava-se que não tinha tomado o Betarsec nem o comprimido da tensão quando tombou desamparado como um saco de batatas.

Achou que não era nada bom morrer daquela maneira, sem glória nem ninguém por perto e sem ter dito à Jacinta, a solteirona do terceiro direito, que gostava dela apesar de dar leite ao gato em pires da Vista Alegre.

Para quem abominava martírio e dor de qualquer espécie, tanto que detestava fazer análises, ser vítima de um AVC só vinha reforçar a ideia de que toda a sua vida tinha sido uma dor substantivada, a maior parte das vezes condenada ao silêncio, sem metáforas, com cenas tristes, e redundâncias, com o pai bêbado de sexta a domingo, agonizando em melancolia e eles todos desejando a segunda-feira para esquecer e ter alguma paz fora daquele ambiente doentio.

Mas não chegou a morrer, apenas mais um susto a pedir repouso.

A mulher do andar de baixo

Para além de Mariana, no andar de baixo residia uma mulher com um papagaio cinzento, o “Jacó”, que passava o dia a dizer “olá” e palavrões retorcidos, herança indivisa da separação que decorrera em câmara lenta, por causa das contas, e do filho, para não baixar as notas ou perder o ano.

No início, o amor cimentara-se num projeto de vida, mas rapidamente se tornara sombrio como um andar devoluto. Era preciso amar para que tudo fizesse sentido num país camuflado de polícia de costumes, raivas e invejas, sempre pronto a denunciar a cadela que ladra à noite ou os de baixo que têm a televisão com o som muito alto, pequenos ditadores em potência de condomínios com quotas em atraso, alheios à velocidade do mundo, com a Europa a tremer de frio e o Putin a testar uma nova arma, enquanto a sobrinha acabara de perder a virgindade à pressa, num rés-do-chão da Brandoa.

Jacinta

Sempre que a humidade da manhã se torna mais densa deixo-me ficar em casa a colecionar doenças e alergias, herança do lado tóxico por parte da mãe, dividida entre a felicidade com aval garantido em likes no Facebook e a vacuidade de uma vida insípida enfiada em setenta metros quadrados hipotecados ao banco, na periferia de Lisboa.

Comecei a dar a ração aos gatos em pratinhos da Vista Alegre, dos castanhos, daqueles mais caros. Aquilo não podia ir à máquina e com os dourados a desaparecer e sem ninguém a quem deixar enxoval… Acabei por não casar, por feitio e comodismo, ciosa dos tarecos, livros e discos, não suportaria a ideia de me andarem a mexer nas coisas, ainda que fosse para arrumar. A empregada que faz a limpeza e passa a ferro às quartas-feiras bem me conhece, tem muita paciência, não responde, não resmunga, é quase certo que era impossível encontrar um homem assim.

Habituei-me a viver só, sem filhos, a ideia da garotada a espalhar brinquedos, a partir coisas, a sujar o chão, aniversários, doces, reuniões na escola e o diabo a quatro, complicava-me com os nervos, além disso nunca tive talento para filha, dificilmente teria jeito para mãe. Vivo, simplesmente, sem preocupações, ordens ou horários, faço sandes sem deixar cair migalhas no chão, não reclamo da natureza das coisas, deixo-me estar quieta, com um bom livro e um copo de vinho, descanso, enquanto o universo faz das suas.

Tal como todos os outros, éramos estupidamente felizes a acreditar que ouvíamos o mar num búzio, com a vida a tornar-se num empréstimo do que estava disponível.

O mundo existia para lhe pormos os pés e podia extinguir-se que ia continuar a rodar ainda que em fragmentos, por aí, ao invés da nossa existência, mera retórica gramatical a desvanecer-se na história.

Narrador — segundo andar, lado direito

E eu volto aos parágrafos.

Escrevo com a pressa de quem foge, imprevisto mergulho na voragem da tua condescendência, em mais um dia de sol e de tédio, em rotundo esforço para pousar o comando da televisão e desenfiar as nádegas do sofá. Tocam à porta. É o carteiro, não tenho correspondência, mas toca sempre aqui para lhe abrir a porta, num prédio confinado a uma ausência prolongada. Continuo indiferente. Mudo os canais e fixo-me numa série cómica, abro um pacote de batatas fritas, cento e vinte gramas de polinsaturados, em óleo de girassol, trinta e cinco por cento de matéria gorda e hidratos, sem corantes, saído da fábrica da Póvoa de Santa Iria. Trinco uma.

Esboço uma tentativa de gargalhada.

Mudo de canal, um thriller; mudo novamente, um drama familiar que envolve traição, doença e arrependimento. Regresso à série cómica. Imagino que estás aqui, encostamo-nos e dormimos em elipse, no lugar da incerteza, trincheira do amor.

E chove, finalmente…