Aquele 19 de maio de 2014 amanheceu agradável em Düsseldorf. O dia ia claro. A temperatura, amena. O Reno, tranquilo. E a primavera parecia começar a anunciar o verão. Nada indicava qualquer quebra de padrão. Tudo seguia normal. Em todas as partes e em todos os sentidos. Até que um funeral modificou de súbito a sensação. Como de hábito, o féretro, típico cristão alemão, vinha em cerimonial modesto. O ataúde não portava requintes. Ele era, em contrário, sóbrio em cores e com poucas flores. Mas a surpresa geral vinha do público. Não havia público. Ou, melhor, tinha. Mas muito pouco. Entre os parentes do morto, só havia um primo e já entrado em anos. Entre os distantes, advogados. Entre os amigos, uns poucos marchands de artes vindos de muitas partes. Entre os neutros, representantes do governo alemão.

Era curioso, muito curioso o que se via ali. O ambiente indicava que algo não ia bem. Ninguém chorava nem sorria. Eram todos alemães. E alemães costumam, sim, conter emoções e expressões. Mas não tanto assim. O que tornava tudo muito estranho. As razões não eram evidentes. Mas, pouco a pouco, algumas informações começaram a aparecer e esclarecer o inusitado da situação. À lapide do morto vinha a nominação Cornelius Gurlitt (1932-2014).

Gurlitt era nome de rua em Düsseldorf. Mas ainda não se sabia se esse nome de rua tinha alguma relação com o, agora, inumado. Era o caso de se tirar saber.

Cornelius Gurlitt vivia em Munique, no bairro de Schwabing, numa discrição absoluta e num silêncio integral. Às voltas com os oitenta anos, a sua saúde começou a fraquejar. O seu coração queria parar. O que o levou a internações e cirurgia. Internações e cirurgia porque, malgrado ermitão, ele não queria morrer. Mas se fosse para morrer, preferia morrer em casa. E assim se deu. Na manhã do 6 de maio de 2014, ele deu o último suspiro. Era uma terça-feira. E, como de costume, ele estava só. Ou quase. Um médico e uma enfermeira velavam os seus últimos momentos.

Tão logo a sua morte se sucedeu, a notícia correu mundo. Os meios artísticos, culturais, educados e eruditos do mundo inteiro apreenderam a nova com um misto de espanto, indiferença e contrição. Todos sabiam do que se tratava. Para alguns, era, simplesmente, o óbito de mais um ermitão de Munique. Para outros, Cornelius era a encarnação de uma complexa e constrangedora controvérsia. Complexa e constrangedora a ponto de quase ninguém querer abordar. Ela remontava aos tempos de Hitler e se espraiava por depois.

Cornelius Gurlitt era filho e herdeiro de Hildebrand Gurlitt (1895-1956). Mas essa informação parecia vazia para quem vivia a sua vida em tranquilidade em 2014. Mas ela ganhou novos contornos quando se apercebeu que Hildebrand Gurlitt fora simplesmente um dos maiores marchands de artes dos tempos de Hitler – e, claro, sob a tutela do Führer. 2014 estava, por claro, parecia longe no tempo, na história e mesmo na memória das tentações do Reich. Mas, olhando bem, não.

Com a morte de Cornelius Gurlitt, a imprensa voltou a veicular – mas agora com mais ênfase e pelo mundo inteiro – a reportagem principal da revista Focus do dia 05 de novembro de 2013 que anunciava na portada “Der kampf um den nazi-schatz” [A luta pelo tesouro nazista] e indicava por complemento “Hitlers Hehler: der kunsthändler Hildebrand Gurlitt” [A cerca de Hitler: o negociante de arte Hildebrand Gurlitt].

Essa reportagem retirou Cornelius Gurlitt do inteiro anonimato e avivou todo o mal-estar que, depois, até hoje, entre os entendidos e entre os implicados, jamais se acalentou.

O ponto de partida imediato do problema remetia, inicialmente, a setembro de 2010. Naquele mês e ano, Cornelius Gurlitt vinha da Suíça para a Alemanha, Zurique para Munique, quando foi interceptado numa inspeção aduaneira de rotina. Quando, ao acaso, a polícia alemã identificou que Cornelius carregava perto de 9 mil euros em espécie. O montante – convenha-se – não era exorbitante. Mas, mesmo assim, causou suspeição.

Cornelius ganhou passagem. Aquele dinheiro não era fruto de nenhuma contravenção. Mas a suspeição – por decoro – gerou investigação. Uma investigação que, ano e pouco depois, ao longo de 2012, levou inquiridores a visitar o apartamento de Cornelius em Munique.

Uma vez por lá e dentro, a perplexidade tomou conta dos oficiais. Todas as dependências do apartamento de Cornelius estavam cobertas de obras de arte. E não quaisquer. Tratava-se nitidamente de Renoir, Picasso, Klee, Kokoschaka, Daumier, Canaletto, Max Liebermann, Franz Marc, Théodore Rousseau, Delacroix, Rodin, Otto Dix, Chagall, Matisse e tantos outros. Todos com aparência de legítimos. Leia-se: originais. O que não se tardou a comprovar. Todos, ao somado, contanto 1406 peças. Que, postas à venda, custariam centenas de bilhões de euros.

Essa descoberta impulsionou uma ruidosa diatribe jurídica, artística e memorial na Alemanha, Europa e no mundo inteiro.

Aquele acervo extraordinariamente impressionante fora adquirido por Hildebrand Gurlitt, pai de Cornelius. E o período majoritário de sua aquisição remetia aos anos de 1933 a 1945. Sob a égide de Hitler e do Reich. Quando parte importante dessas obras foi espoliada ou tiveram a sua venda forçada. Eram tempos difíceis. Tempos nazistas.

Mas depois, quando alguma normalidade voltou a ambientar cotidianos, o estado e o aparato jurídico alemão não contestaram a posse dessas obras a Hildebrand Gurlitt. Bem a contrário. Deram, inclusive, endosso. Entenderam se tratar de direito inviolável de propriedade.

Com a morte de Hildebrand Gurlitt, Cornelius passou a ter a posse legítima do acervo. Mas ninguém – ou quase ninguém – sabia. Mas, após a interpelação em seu apartamento em 2012, variados estados europeus e entidades privadas passaram a litigar as obras. Ao fim das contas, eram patrimônios espoliados em tempos de guerra. Mas, diante do sigilo e do silêncio sobre essa situação, a revista Focus foi conduzida a publicar a matéria de capa do dia 05 de novembro de 2013.

Essa matéria, além de notabilizar Cornelius e avivar a memória dos feitos de seu progenitor, instrumentalizou novas investigações que permitiram a localização, em fevereiro de 2014, de outro apartamento de Cornelius em Salzburgo, na Áustria, contendo 238 obras, das quais 39 pinturas a óleo e aquarelas de Monet (Waterloo Bridge, temps gris), Corot, Renoir, Manet, Courbet (Portrait de M. Jean Journet), Pissarro, Gauguin, Toulouse-Lautrec, Liebermann, Cézanne et Nolde.

O conjunto dessa situação, a partir de 2010, levou Cornelius a acelerar a confecção de seu testamento e determinar a doação – em legado – de todo o acervo ao Museu de Berna, na Suíça.

Por tudo isso, aquele 19 de maio de 2014 – dia de sua morte – não foi tão trivial assim. Ele escancarou o mal-estar Gurlitt.