A morte de Maria da Conceição Tavares no 8 de junho de 2024 não passou despercebida no Brasil. E por uma razão simples: a sua vida inteira também não passou despercebida.
Ela foi isso que os franceses chamam de intelectual. No sentido mais profundo da expressão. Uma pessoa engajada, moral e espiritualmente, com as epopeias nacionais e internacionais de seu tempo. Uma personalidade que, pela sua inteligência e pelo seu empenho, tornou-se referência incontornável da intelligentsia brasileira. Sendo uma das primeiras mulheres a adentrar os jardins intranquilos da Economia, da Política e do political decision making process e ficar. Ficar em pé. Seguir relevante. Sem jamais se vender.
Uma hagiologia completa da mestre imporia lembrar que ela nasceu em Portugal no ano de 1930. Ficou por lá até concluir uma primeira formação, em Matemática, em 1953. E, em seguida, singrou para o Brasil em 1954.
O seu pai era marchand de importação e exportação de vinhos. Instalou-se no Rio de Janeiro, ainda a capital do país. Mas não tardou edificar uma fábrica de cervejas no Paraná, estado mais ao sul. Enquanto isso, Conceição Tavares, casada desde 1952, permaneceu no Rio de Janeiro com a família e em 1955 ingressou no Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC) como analista estatística. Em 1957, naturalizou-se brasileira e, no ano seguinte, ingressou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), na função de analista matemática, que exerceu até 1960, quando concluiu a formação em Economia e ingressou na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Na CEPAL, agência das Nações Unidas nas Américas, ela permaneceu de 1961 a 1974, quando fincou raízes na universidade brasileira.
Ela já era professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas, de retorno do Chile, sede da CEPAL, ao Brasil, veio para São Paulo ajudar a consolidar a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fundar o curso de Pós-Graduação em Economia. Doutorou-se, ela própria, na UFRJ em 1975 e, em 1978, tornou-se professor titular de Macroeconomia, sucedendo o importante economista Octávio Gouveia de Bulhões (1906-1990).
Vivia-se, no Brasil, o regime militar desde 1964. Um momento – para dizer o mínimo – controverso. Onde existia privações de liberdades por um lado e sucesso econômico por outro. A performance da economia brasileira do período chegou a dois dígitos, com um crescimento econômico que, portanto, ultrapassou os 10% ao ano. A euforia foi espetacular. Notadamente sob a presidência do general Médici. Tanto que se convencionou chamar o momento de “milagre brasileiro”. Mas Conceição Tavares não localizou nada de milagre. Muito pelo contrário . Por princípio, Conceição Tavares sempre se enquadrou à esquerda. E, portanto, hipertrofiava a sua percepção ao encontro das iniquidades sociais, que o dito “milagre econômico” não estava sendo capaz de aplacar. Diante disso, eram imensas e frontais as suas restrições ao encontro do mainstream econômico do período. E, devido a isso, ela seria presa, maltratada, desrespeitada, desconsiderada, humilhada e ultrajada pelo regime militar.
Mas, a partir do início da abertura “lenta, gradual e segura” ensejada pela presidência do general Ernesto Geisel, ela passou a se situar às voltas com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) que se opunha à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido dos militares – vale lembrar que, sob o regime militar brasileiro, suprimiam-se os partidos permitindo a atuação apenas do MDB e do ARENA.
As presidenciais de 1973 fizeram emergir uma personagem decisiva para a reabilitação política do Brasil de nome Ulysses Guimarães (1916-1992). Naquele pleito, ele apresentou uma candidatura de protesto contra o candidato militar, que era o general Geisel. Ulysses, por óbvio, perdeu. Mas abriu caminho para a ampliação da capilaridade do MDB no imaginário dos brasileiros. De maneira que as eleições para o Senado no ano seguinte, em 1974, permitiram um avanço considerável da legenda no Parlamento assim como o pleito municipal de 1976 fez avançar consideravelmente a representação democrática nas prefeituras e na vereança. Conceição Tavares vendo tudo isso, não resistiu: ingressou no partido e se transformou em um de seus expoentes a partir de 1980.
E, assim, desde dentro da engrenagem e de modo privilegiado, acompanhou os principais momentos da vida nacional brasileira. Das Diretas Já! – movimento em reivindicação do retorno de eleições diretas para o cargo máximo da nação, vez que as eleições eram todas indiretas desde a inauguração do regime militar – à eleição indireta do presidente Tancredo de Almeida Neves, primeiro civil alçado ao poder magnânimo depois de 1964. Da presidência de José Sarney – devido à morte do presidente Tancredo – à Assembleia Constituinte à Constituição Cidadã de 1988 à eleição do presidente Fernando Collor de Mello em 1989 aos planos econômicos dramaticamente fracassados ao impeachment de 1992 à afirmação do Plano Real – plano de estabilização econômica – sob a presidência de Itamar Franco.
Uma experiência, inequivocamente, rica. Que levaria Conceição Tavares a migrar do, agora, Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) para o Partido dos Trabalhadores (PT) – vale, singelamente, lembrar que o sistema partidário brasileiro foi recomposto a partir de 1980 quando se permitiu a pluralização das agremiações políticas no país com a mutação de MDB em PMDB e com o surgimento outras tendências como o PT.
No PT, em 1994, tornou-se deputada federal e exerceu o cargo na legislatura de 1995-1999. Foi, como sempre, combativa, responsiva, contundente e genial.
Saiu da política e, em certa medida, da vida pública em seguida. Viu – ajudou e cooperou para – a ascensão de Lula da Silva à presidência da República em 2003. Acompanhou – e indicou muita gente – a organização do governo. Frustrou-se, como todos, com o dito escândalo do Mensalão em 2005. Discutiu caminhos para a contenção e superação da crise financeira mundial de 2008. Observou a indicação e aceitação de sua antiga aluna, Dilma Vana Rousseff, para a presidência da República em sucessão do presidente Lula da Silva.
Ficou, como muitos, perplexa com o arranjo desenvolvimentista, sob a Nova Matriz Econômica, ensejado em 2011-2016. Chocou-se com os protestos de junho de 2013. Não foi insensível à inegável brutalização da totalidade das relações sociais no Brasil – e, especialmente, a política – no torvelinho desse período. Foi combativa em oposição movimento de impeachment de 2016. Seguiu embasbacada à deriva brasileira doravante. Conteve-se, elegantemente muito, quem sabe, pela idade, durante a presidência de Jair Messias Bolsonaro, 2019-2022. Sondou sem ilusões o retorno do presidente Lula da Silva ao poder em 2023. E preferiu se privar de comentar os movimentos dessa nova aventura política brasileira.
A sua morte em inícios de junho de 2024 deixou um vazio imenso na vida nacional brasileira. Sem Conceição Tavares, o país parece ficar menos circunspecto e, quem sabe, até menos digno. Conceição Tavares nunca saiu das trincheiras. A sua vida inteira foi de luta. Luta contra as injustiças e luta por um Brasil bonito e bom.
Durma em paz, mestre!
Muito obrigado.