Leia com calma e releia com atenção.

A história nos mostra que a guerra é um fenômeno que vai de par com o desenvolvimento da humanidade. A guerra convém ao homem como a maternidade à mulher. Eu não acredito na paz perpétua. Eu a considero deprimente e contrária às virtudes essenciais do homem que, somente diante de esforços ‘sanguinários’ ascende à luz do Sol.

O autor dessas frases foi o Duce Benito Mussolini e cada uma delas compõe um discurso que ele pronunciou diante da Câmara de Deputados italianos no dia 26 de março de 1934.

Quem ler e reler essa passagem com calma e atenção vai entrever a gesticulação histriônica do líder fascista. Basta memorizar parte dessas frases e mirar uma foto qualquer do antigo jornalista de Dovia de Predappio para tudo rememorar. Era algo, assim, negativamente, extraordinário.

Quase nenhum político daquela época era tão enfático na condenação da paz – por mais infausta que aquela paz do entreguerras pudesse ser – como ele o era. Quase nenhum cidadão, europeu ou não, do período, apostava tanto na violência como recorte de civilidade como ele fazia. Quase nenhum ser humano era tão depreciador das pluralidades humanas como ele afirmava ser.

Ele era tudo isso quase sozinho, mas comungava disso tudo como muita gente ao seu redor. Seu diferencial era ter coragem para, sob esses preceitos, liderar, coordenar, influenciar. Uma liderança ancorada em retórica – verbal, escrita e gestual – e em estilo feitos para chocar.

A Itália – de par com a Alemanha – vivia tempos terríveis e, sob diversos aspectos, ainda sorvia a Grande Guerra sem fim. Os acordos de Versalhes foram imediatamente, já em 1919, considerados uma traição. Uma geração de italianos havia apoiado os aliados em fronts e trincheiras sob a promessa de ganhos territoriais após o conflito, mas, durante e depois das tratativas de paz – 1918, 1919 e 1920 especialmente –, os magnânimos do après pelos palácios franceses em Versalhes e em Paris preferiram eliminar essa informação de suas recordações. O que causou mágoa, ressentimento, ira e desacorçoo a variados segmentos italianos.

Conseguintemente, na primavera boreal de 1919, o reputado filósofo Giovani Gentille ponderou abertamente que a guerra não havia terminado para os italianos. Bem ao seu contrário, ela continuava na alma e nos espíritos e, internamente, começara a servir de fundamento para a refundação do ethos italiano em todas as dimensões da vida pública e privada.

No campo político, essa movimentação lançou a integralidade da classe dominante em suspeição. Notadamente os diplomatas e os negociadores dos destinos italianos naquele mundo à deriva desde 1914 foram, assim, simplesmente inseridos no index dos novos tempos.

Outros vários apanágios do regime anterior tiveram o mesmo destino. A Sibéria italiana, desse modo, passou a ser a afirmação ostensiva do ostracismo, do opróbio, da humilhação e da agressão gratuita para todos aqueles considerados traidores da pátria.

Tudo em nome e em favor do tempo novo.

Como na Alemanha – mas também em outros países europeus, balcânicos e médio-orientais derrotados e humilhados na Grande Guerra –, os italianos recompuseram a integralidade de suas sociabilidades após o dilúvio de 1914-1918 baseada no binômio “amigo/inimigo”. Essa cunha cardinal do renascimento italiano suprimiu, por essência, a ideia de compromissos. Uma ideia percebida pelos “novos italianos” dominantes na opinião pública e na condução política como a responsável pelos infortúnios morais e existenciais da Itália e dos italianos nas trincheiras e, após o 11 de novembro de 1918, nos tapetes púrpuros dos palácios franceses. O elemento nuclear dessa supressão – que gente como o jurista Carl Schmitt observou, caracterizou e teorizou imediatamente – era a inviabilidade de quaisquer laivos democráticos.

Desse modo, desde o virar de costas do presidente Woodrow Wilson de retorno para Washington que o sentido da democracia liberal e das liberdades essenciais propaladas pelos Quatorze Pontos do gentil locatário da Casa Branca virou quimera. O que se viu – e se praticou – na Itália logo em seguida foram implacáveis revisionismos históricos e culturais para a identificação – e, em seguida, perseguição sem descanso – dos “incorrigíveis” inimigos internos e externos, a saber: democratas, socialistas, comunistas, franco-maçons e homossexuais. Assim, doravante, a partir dos anos de 1920, toda e qualquer pessoa, de perto ou longe, associada a quaisquer desses enquadramentos, era entendida como “fraca”, “assassina” ou “deturpadora” do ethos italiano.

Como, à rigor, portanto, a Guerra, para eles, não terminara, os “novos italianos” foram, pouco a pouco, se convencendo nostálgicos e devotos da geração dos fronts. Aqueles que viram o Inferno a olho nu. Que conversaram com as ninfas do Juízo Final. Que tocaram o trágico com as próprias mãos. Consequentemente, aqueles que materializaram a coragem, o heroísmo, a abnegação e seus consortes ineditamente após a era napoleônica.

Tudo isso somado a confusas inspirações advindas do futurismo, do sindicalismo revolucionário e de nacionalismos exacerbados emancipou o fascismo.

Como resultado emergiu na Itália um sistema político bruto, bronco e brutal e uma realidade social baseada na celebração da força, da virilidade e da obediência ao chefe. Subsidiário a ele virou imanente a exaltação da violência e fascinação generalizada por armas e armamentos. Como consequência direta de tudo isso foi instalada uma realidade de absurda e gigantesca radicalização adicionada a uma brutalização de todas as relações humanas.

Esse zeitgeist italiano foi marinado após 1918 e amplificado com a crise de 1929. Nesses entretempos, todas as iracundas peculiaridades do regime e da sociedade foram se normalizando como essência de vivência e fundamento para a sobrevivência. Tanto que as palavras selváticas do Duce – aos parlamentares e à sociedade em geral – eram recebidas como música aos ouvidos.

Eis o fascismo e eis aquilo que inspirou tantos extremismos.

Após a queda da Alemanha e a humilhação do Japão essa tentação virou história. Passou-se, assim, a se reivindicar um fascismo histórico cuja matriz não existia mais. De todo modo, muito do que se viu e sentiu na Guerra Fria e depois mobilizava a sua inspiração.

Ao longo do presente século, o 21, essa inspiração volta a ser namorada diante da verdadeira proliferação de autocracias imantada em féretros ininterruptos de democracias por toda parte. Muitos nostálgicos da violência gratuita e da brutalização das interações aos moldes do Duce voltam, assim, a pavimentar a paisagem política de várias instalações. Muitos deles não passam seguramente de broncos, brutos, excêntricos e imperativamente mal-educados. Mas todos eles sabem que o que praticam não passa do réquiem de tempos tristes, onde o verniz de fascismo vive de inspiração e aparência. Aparência e inspiração que só fazem enganar.