Decidi falar sobre um filme que vem me impactando há muito tempo, seja pela sua estrutura narrativa, seja pelo histórico biográfico de seu diretor, Darren Aronofsky.
Há um tempo, desenvolvi o hábito de ver filmes por diretor. Comecei com os filmes cheios de desdobramentos e perspectivas de Tarantino e tropecei no abstrato com Aronofsky. Até então, eu havia experimentado uma certa dose de “vamos ver o que posso subverter no roteiro hoje” com Pulp Fiction: Tempo de Violência (Tarantino, 1994). Mas em Mother! (2017) - e é assim mesmo, com ponto de exclamação - eu experimentei diversas sensações: o sufocamento, a agonia do desconhecido e o desnorteamento.
Antes de prosseguir com minhas observações sobre o filme, gostaria de alertar que este texto pode conter alguns spoilers. Se você ainda não assistiu ao filme e prefere não saber detalhes sobre a trama, recomendo que pare por aqui e volte após assistir ao filme. Caso contrário, continue lendo para explorar minhas reflexões e interpretações sobre esta obra cinematográfica fascinante.
Em Mother!, não há trilha sonora e os personagens não têm nome. É incrível como isso não faz a menor diferença e esse detalhe pode passar despercebido pelo espectador. Mas instintivamente isso causa um estranhamento. À medida que novos personagens são inseridos na trama, a sensação é que nem fomos apresentados ainda ao elenco inicial e já surgiram outros, com outras questões e mistérios para nossa lista de perguntas não respondidas. Na esteira de eventos, vamos nos identificando com algumas representações e tentando resolver alguns enigmas. Então, uma virada acontece e somos pegos de surpresa. E o espanto vem acompanhado da sensação de impotência diante dos acontecimentos. Até aí não entendemos nada e continuamos sem entender até os 5 minutos finais do filme. Sim, você descobre que tudo se tratava de uma grande e belíssima alegoria que faz referência a diversas histórias e temas religiosos, incluindo passagens do Gênesis à Revelação. O filme se aprofunda nas questões humanas ligadas à fé e à crença no divino, que eu entendo serem coisas bem diferentes.
Aprendi nos anos em que fui cristã que fé é a certeza de algo que não se viu ou que ainda não se comprovou materialmente. Quando me refiro à crença no divino falo do reconhecimento de que existe algo pairando na seara espiritual, mas não necessariamente se crê ou se recorre a esta manifestação extrafísica em busca de conforto, redenção e equilíbrio. E aqui não me refiro ao agnosticismo. Sendo direta, falo da religiosidade ligada ao poder e tudo o que vem com ele: dinheiro, voz e controle de massa.
Na obra, temos a representação de Deus e da Natureza, interpretado de forma magistral por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, respectivamente. Eles moram em uma casa isolada no campo, que sofreu um incêndio há algum tempo – a trama não revela quando - e a personagem de Jennifer reforma sozinha cômodo por cômodo. Deus se ocupava tentando escrever um texto, mas sem sucesso. Mesmo assim, sentia uma necessidade intensa de criar. Até que ele forma Adão, o primeiro homem, segundo a Bíblia. Nesse momento, a Natureza sente.
A personagem de Lawrence passa mal assim que Adão surge na casa. Ela fica sem ar e quase desmaia. Então ela bebe às pressas um líquido amarelo, que aparenta ser uma representação do sol ou de todos os recursos naturais disponíveis para o planeta se reequilibrar. Ela, enquanto Natureza, está sempre checando a estrutura da casa, e o que ela vê ao tocar as paredes, é um organismo vivo, pulsante, que vai se degradando cada vez que os seres humanos intervêm invadindo e destruindo os cômodos da casa, que aqui representa o planeta Terra.
É lógico que o filme faz, nessa camada alegórica, uma denúncia séria da forma como tratamos o meio ambiente. Tanto o roteiro como a direção são bem pessimistas quanto ao nosso futuro e não há como negar. Caminhamos a passos largos para o nosso fim se medidas urgentes não forem tomadas quanto ao aquecimento global, para citar um exemplo.
Mas o que me motiva a escrever a pauta de hoje é a camada alegórica que trata de poder e gênero. Na segunda parte do filme, a personagem de Jennifer está grávida e dará luz ao filho de Deus. Percebemos aí uma multiplicidade de personas conectadas a essa mulher. Por isso ela é a mãe: a mãe natureza, a mãe do filho de Deus, ela é Maria, ela é o feminino sagrado. E no decorrer do filme, esta mulher é desrespeitada a todo momento. Sua privacidade foi invadida, sua opinião não é levada em conta, ela se torna impotente sobre o bem que foi confiada a preservar e ainda é assediada. Vale destacar que aqui Deus foi representado como um homem egocêntrico e sedutor, que precisa criar e precisa sentir-se adorado, mesmo que isso prejudique quem sempre esteve do seu lado, a natureza. Mas interessante notar que mesmo após tomar decisões egoístas e condenáveis, nós nos sentimos cativados com a presença de Javier Bardem em tela. Ficamos com raiva, mas logo depois o perdoamos. Ele emite um olhar de desprezo que gera calafrio e logo em seguida abre um largo sorriso que nos afaga e nós confiamos nele, mesmo que confusos. Deus aqui é um homem tóxico, que age motivado pelo desejo de ser o centro das atenções, mas sempre arranja um jeito de ganhar nossa confiança de volta.
Isso faz todo o sentido quando pensamos na relação de uma grande massa com o divino e o lugar que o fanatismo religioso atribui ao Todo-Poderoso. A escalada sem precedentes nas guerras com motivações religiosas é o ápice, mas há também o impacto nas micro relações que vão dividindo a nossa sociedade patriarcal. Ele é o contraditório: dá livre-arbítrio, mas pune o pecador. Odeia a violência, mas é o Deus dos Exércitos. Ele é amor, mas nos ensina a temê-lo. E nós experimentamos essa sensação quando alguns personagens reproduzem este comportamento, agindo em nome de Deus, porque foram feitos à imagem de Deus. Em um dado momento, uma mulher aparentemente afetuosa, chama a nossa Deusa-mãe do filme de “inspiração”, demonstra carinho e admiração. Instantes depois percebemos que esse sorriso carrega uma dualidade, transmitindo tanto uma sensação de devoção quanto uma ameaça implícita.
Deus é frequentemente associado à figura do masculino, mas nem sempre foi assim. De acordo com a arqueologia, as sociedades pré-históricas experimentaram o culto à Grande Deusa, entre o período Paleolítico (3.500 a.C.) até o Neolítico (7.000 a.C.). O estudo de Gomes e Sestrem1 sobre a concepção histórica da figura feminina nos mitos religiosos destaca a influência das deidades femininas na construção de gênero e práticas sociais. De acordo com o artigo, nessa época o feminino estava entrelaçado ao divino. Elas eram as criadoras do Universo, as responsáveis pelo destino da humanidade, as caçadoras, as que proviam a cura, as líderes de batalha.
Há registros que vinculam as sociedades antigas que adoravam figuras femininas divinas, às primeiras a desenvolver leis, governos, medicina, agricultura, veículos com rodas, tecelagem, cerâmica e até mesmo linguagem escrita, muito antes do que a gente imagina ou aprende na história. Por milhares de anos, essas religiões que celebravam deidades femininas conviveram com outras culturas que, com o tempo, passaram a adorar figuras masculinas. Teólogos e historiadores afirmam que Abraão, considerado o patriarca do judaísmo, cristianismo e islamismo, teve um papel importante nesse processo. Com o tempo, as tribos lideradas por Abraão começaram a seguir uma nova crença centrada em um Deus masculino, único e supremo. O culto à grande Deusa durou até aproximadamente 500 d.C., quando começou a diminuir com o declínio da cultura matriarcal e o fechamento dos templos dedicados a essas divindades1. Ao que tudo indica, o renomado diretor bebeu desta fonte para criar sua obra cinematográfica.
À medida que a narrativa avança, inspirado na criança que está prestes a nascer, Deus consegue concluir a sua obra. Nesse ponto da história, uma multidão invade a casa que se torna um campo de batalha ideológico, com conflitos cada vez mais intensos entre os diferentes grupos e ideologias, cada um com sua própria interpretação do texto e agenda. Percebemos aqui, uma alusão ao Novo Testamento e uma reflexão sobre a diversidade e a complexidade das crenças religiosas e filosóficas. Conforme o conflito entre os diferentes grupos se intensifica, vemos a casa ser consumida pelo caos, pela violência e pelo fanatismo. Próximo do final do filme, nossa Deusa mãe dá luz ao seu filho, Jesus, que é brutalmente assassinado e servido como alimento, uma piscada do roteiro para nós sobre a Eucaristia, o costume de celebrar a morte de Cristo, em que os fiéis consomem o pão e o vinho como símbolos do corpo e do sangue de Cristo. Horrorizada diante da situação, a Natureza grita e incendeia toda a casa, destruindo a todos, inclusive a si mesma. O único sobrevivente é o personagem de Javier Bardem e então, o filme revela a real natureza dos personagens, com Deus reiniciando o ciclo da criação humana através do coração da Mãe Deusa. Considero este final, a cereja do bolo. Deus só pode criar a partir dela. Ela é a inspiração, o começo e o fim. Mesmo assim, ela sucumbe pela mão do Deus pai. O poder é tirado de suas entranhas e lhe é dado. Uma maneira muito sutil de trazer à tona, também, essa passagem de bastão de poder entre os gêneros. Será que estamos insistindo no erro? Mother! (2017) é, sem dúvida, um filme perturbador e já adianto que não é uma trama fácil de acompanhar. Mas a riqueza de reflexões vale a pena.
Notas
1 Gomes, Beatriz Machado; Sestrem, Bruna Alice. Concepção histórica da figura feminina: os mitos religiosos. In: Palma, Yáskara Arrial (Org.). Produção de subjetividade, políticas públicas e sociedade: Coleção Subjetividade e Práticas Sociais. Belo Horizonte: Newton, 2024. p. 32-33.