Sabemos dos desafios da escola pública. A conjugação na primeira pessoa no plural respeita a realidade: todos falamos sobre a educação pública, e é bonito que todos se importem com a construção de uma sociedade mais igualitária. No entanto, a frase escrita por uma professora de escola pública respeita a minha realidade particular. Eu e meus colegas de profissão nos prestamos ao serviço. Eu sei dos desafios da escola pública e acredito na importância que todos saibam. Alguns dos desafios são comuns a todos nós.
Em dezembro de 2023, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro lançou uma consulta pública a respeito do uso dos celulares nas escolas, na qual professores, gestores, pais e toda a comunidade puderam participar. Trata-se de um movimento em curso desde agosto de 2023, quando um decreto da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro proibiu o uso de celulares nas salas de aula. Em dezembro do mesmo ano, a secretaria lançou a consulta pública sobre a proibição do uso de celulares não apenas em sala de aula, mas em todo espaço escolar. Isso mobiliza debates a respeito do tempo na escola e do tempo vivido no mundo digital.
A importância da educação pública não pode ser destacada da necessidade de assistência à população. Aprende quem tem acesso à saúde, à alimentação e à moradia. Os planos para o futuro de uma criança exigem o atendimento às necessidades básicas, para que, depois, a pessoa possa reconhecer as suas necessidades individuais. A escola não pode transformar sonhos em realidade, mas deve criar condições para que a pessoa possa sonhar.
Quando os aparelhos celulares foram popularizados nas cidades brasileiras, não se sabia qual seria a melhor forma de inseri-los nas escolas, se seria o caso de regular o seu uso ou direcionar o seu uso para fins pedagógicos. Com os anos, verificamos que o aumento do sofrimento de crianças e adolescentes pode coincidir com o uso abusivo de aparelhos celulares. O aumento de casos de suicídio entre a população mais jovem é um dado alarmante neste sentido.
Com isso, a reflexão coletiva a respeito da escola que queremos, a escola que seja promotora de saúde e produtora de conhecimento, no presente e no futuro, deve ser atualizada diante dessa realidade. Com a sabedoria de discernir o saldo de perdas e ganhos e reconhecer que a tecnologia não é nociva, em essência, mas que a forma como usamos hoje frequentemente é. A escola pode ser o espaço em que se ensina a usar o celular como um meio de acesso à comunicação, com consciência e moderação.
A proibição dos celulares nas escolas estaria em consonância com o Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023 da UNESCO, que associa o uso de celulares à dificuldade de concentração e ao prejuízo à saúde mental das crianças e adolescentes. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pelo PISA, a maior avaliação mundial de estudantes, afirmou que houve “uma queda sem precedentes” na última edição divulgada recentemente e que “45% dos alunos relataram sentir-se nervosos ou ansiosos se seus telefones não estivessem perto deles, em média, nos países da OCDE, e 65% relataram serem distraídos pelo uso de dispositivos digitais em pelo menos algumas aulas de matemática. A proporção ultrapassou 80% na Argentina, Brasil, Chile, Finlândia, Uruguai”, entre outros países.
O pediatra Daniel Becker concorda com a proibição dos celulares nas escolas e afirma que vivemos uma “epidemia da distração”, o que prejudica a saúde mental das crianças. “Nós estamos exilando as crianças das experiências mais fundamentais das suas vidas, da brincadeira, do contato com outras crianças e do seu próprio cérebro”. Ele afirma que “os danos para o cérebro de crianças são inúmeros: aumento da irritabilidade, diminuição da capacidade de atenção focada, incapacidade de lidar com o tédio, retardo do desenvolvimento da linguagem e dificuldade de frustrações. No caso de adolescentes, exclusão, violência com episódios de cyberbullying e perda de autoestima”.
O tema compulsão, que está por trás dos comportamentos aditivos com o consumo repetitivo e excessivo de substâncias e relações - bebidas, comida, jogos e redes sociais, por exemplo - é associado à busca por recompensa e prazer a partir de experiências desconfortáveis como tédio, medo e ansiedade. Nos casos dos celulares e da comida, que não podem ser proibidos e estão acessíveis à população, a regulação do uso deve ser ensinada.
A dopamina é o principal neurotransmissor que determina comportamentos humanos em busca de prazer e recompensa. Se as pessoas sempre buscaram prazer e alívio de sofrimento, hoje os aparelhos celulares oferecem essa sensação ao alcance das mãos.
O autocomprometimento e a autodisciplina podem ser apresentados a partir do reconhecimento da sensação de aprisionamento que o comportamento compulsivo nos leva a sentir. Afinal, a perda de autonomia e de ação voluntária diante do seu tempo disponível ao lazer e ao cumprimento das obrigações geram frustrações.
O comportamento compulsivo drena a nossa energia e consome o tempo limitado que temos. Todos temos entregas a fazer. Nas escolas, os adolescentes iniciam o comprometimento com algumas entregas: trabalhos, preparação para avaliações, organização e material. Um adolescente que sonha pode se tornar um adulto que se expressa livremente por meio de uma entrega qualificada, que escolhe o que entregar e como. Isso requer tempo, hábito e escolhas que a escola pode agenciar.
Como ensinar essa organização se o tempo está sendo consumido e a atenção dirigida a conteúdos formatados para o atendimento do prazer imediato e que não exigem dos jovens qualquer empenho de entrega e de autoria? Qual é o tempo de reconhecimento das necessidades da pessoa?
Para se criar um sonho, é preciso conviver com a matéria do seu desconforto. Para se criar um sonho é preciso prestar atenção ao que se sente. Para se criar um sonho é preciso tempo.
Além disso, há uma balança bioquímica que compensa prazer e sofrimento. Como escreve a autora Anna Lembke1: “com a repetida exposição ao mesmo estímulo ao prazer ou a um estímulo semelhante, o desvio inicial para o lado do prazer fica mais fraco e mais curto, e a resposta posterior para o lado do sofrimento fica mais forte e mais demorada”. Ou seja, muito prazer, causa sofrimento.
Antes da “epidemia de distração” atual, em 1996, o francês Jacques Lucien Jean Delors, na época representante da Unesco, publicou o que ficaria conhecido como Relatório Delors, que confere a importância do aprendizado ao longo da vida calcado pelos quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.
O primeiro pilar, aprender a conhecer, se justifica ao tratar o conhecimento como uma prática. Não se trata de conhecer apenas, é preciso aprender como se conhece. Afinal, o aprendizado pode parecer um caso de acúmulo de conhecimento, o que é um erro. Não é sobre pensar mais do que pensamos, é sobre pensar melhor e reconhecer quando os nossos pensamentos estão colonizados por outros.
Aprender a fazer pode ser associado com as competências do BNCC, definidas no próprio documento como mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Na educação infantil, o brincar é altamente educativo. Na educação fundamental, construir produtos e desenvolver projetos.
Aprender a conviver é uma vocação da vida escolar. Na memória de todos nós, a escola foi um espaço formador não apenas pelo conteúdo apresentado pelos professores, mas pela socialização. No momento de ingresso nas escolas, as crianças têm a chance de conviver com crianças e adultos fora dos laços de parentesco. Com o ingresso na escola, a criança entende que pode comparecer ao mundo diferente da forma como ela encena a si mesma na família. Pode haver muito carinho e proteção na família e na escola não tanto, ou ao contrário. De qualquer forma, tanto a casa quanto a escola devem ser ambientes protegidos para esta experimentação psíquica e inconsciente.
Aprender a ser é uma utopia necessária para quem trabalha com educação. Eu gosto de imaginar que é o que todos fazemos, de forma consciente ou não. A educação pode tornar a busca por viver com mais liberdade consciente. Liberdade é ter escolha a partir do reconhecimento de quem se é. Ser quem se é parece óbvio e natural, mas não é. Requer escuta, silêncio, consciência e autoestudo, pois é mais fácil nos identificar com outras pessoas e seguir os seus passos. O professor promove este pilar ao fazer perguntas sobre o que o aluno gosta, como ele se sente bem ou quando ele está à vontade com ele mesmo. Além disso, ao criar situações que levem os estudantes a saberem um pouco o que os desafia e o que os estimula. Claro que há recortes de classe e de raça que tornam pessoas privilegiadas mais propensas a experienciar a liberdade de ser quem se é, o que não vem ao caso agora.
Para os quatro pilares propostos no Relatório Delors, o uso ilimitado dos celulares é um obstáculo. Ressalto que antes dos celulares já havia dificuldade de atenção em sala de aula, em parte porque é desafiador manter a atenção voltada a assuntos que não interessam diretamente aos apelos imediatistas dos adolescentes. Para todas as situações de desinteresse, a mente oferece recursos escapatórios. Podemos nos distrair sem os celulares. Mas o uso dos celulares não apenas eleva a distração, mas conduz a busca por prazeres sem esforço cognitivo. Afinal, um vídeo é autoexplicativo, fácil de entender e divertido, qualidades que faltam nos assuntos da escola, muitas vezes.
A diversão é importante na vida das crianças e adolescentes, mas a diversão sem limites causa sofrimento. Pela própria dinâmica da produção de dopamina, o excesso de prazer desequilibra a homeostase, uma balança imaginária que mantemos entre prazer e sofrimento. A moderação, a regulação e o equilíbrio entre atividades devem ser incentivadas nas escolas, através de apresentação de aulas reflexivas a respeito dos nossos próprios comportamentos e de ferramentas de saúde e bem-estar que levem em consideração a nossa realidade hoje.
Notas
1 Lembke, Anna. Nação Dopamina. São Paulo: Vestígio. 2023.