Há algum tempo, me deparei com esta citação de Einstein “o homem que considera sua vida e as de seus semelhantes como sem sentido não é apenas infeliz, mas quase desqualificado para a vida”.

Eu trabalho com pacientes que vivem com doenças crônicas e pacientes com câncer durante o tratamento quimioterápico. Espera-se que em algum momento de nosso encontro o foco seja “por que eu?” “eu mereço isso?” “é minha culpa” “Se eu tivesse”, “eu deveria”, “eu não deveria”, “e se caso”.

Esses pacientes estão enfrentando dor ou morte e, embora cada circunstância seja única, não sou diferente dos pacientes que veem ao meu consultório. Eu também perguntei por que isso ou aquilo tinha que acontecer comigo? Por que eu deveria ter passado por tal experiência que me despedaçou, fragmentou minha percepção? Por que fiquei em pedaços? Por que as coisas que eu pensava serem estáveis e permanentes mudaram, desapareceram, morreram, foram apagadas da existência? Deixando-me com as questões que ficam depois da ausência, questões que persistem; porque no fundo…a ausência é também uma forma de presença.

Comecei meus dias como professora, minha disciplina era literatura e análise de discurso. Lembro-me que meu primeiro projeto de pesquisa enfocou no uso do discurso como ferramenta para instalação e manutenção do império por Augusto César. O uso das representações para significar e instalar um significado social, em que o principal referente é o imperador. Aprendi muito sobre controle social por meio da construção deliberada de significado. Sabemos que na política e nas crenças sociais, significado é poder.

Isso foi anos atrás, não achei que me serviria bem quando pisei em uma ala hospitalar e conheci meu primeiro paciente. Era um paciente jovem, paralisado fisicamente e mentalmente após um acidente de bicicleta que lhe desfigurou a perna. Havia dor física, porém o maior obstáculo para ele era os abismos intransponíveis entre sua vida como a conheciam e essa vida futura desconhecida e indesejada.

Lembro-me de suas palavras, o tom de sua voz; me disse: “Você quer ver o que aconteceu comigo?” como se dissesse: - não acredito, olhe para minha perna e me diga, você vê a mesma coisa que eu vejo? A incrível dureza e negação da realidade que ele estava vivendo nos últimos quarenta dias, tudo muito palpável através de sua voz. Por uma fração de segundos pensei, não, não quero ver, então percebi – há escritos no corpo dessa pessoa que precisam ser lidos.

Sou psicóloga e nem todos os pacientes do hospital precisam de nós. A maioria dos pacientes está no hospital para um procedimento médico que salva vidas. Depois que a vida é salva, a energia é restituída às questões da vida. O encaminhamento para o departamento de psicologia às vezes assume a forma de encaminhamento para transtorno de ajustamento. O DSM-5 define transtorno de ajustamento como:

A. O desenvolvimento de sintomas emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor(es) identificável(is) ocorrendo dentro de 3 meses após o início do(s) estressor(es)

B. Esses sintomas ou comportamentos são clinicamente significativos, conforme evidenciado por um ou ambos os seguintes:

  1. Sofrimento acentuado desproporcional à gravidade ou intensidade do estressor, levando em consideração o contexto externo e os fatores culturais que podem influenciar a gravidade e a apresentação dos sintomas.
  2. Prejuízo significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento.

C. A perturbação relacionada ao estresse não preenche os critérios para outro transtorno mental e não é meramente uma exacerbação de um transtorno mental preexistente.

D. Os sintomas não representam luto normal.

Num ambiente de saúde, como o hospital, após a prevenção da morte, alguns pacientes apresentam com uma presença fantasmagórica de perigo, marcada pela alta vigilância e ansiedade que toma conta de suas vidas, outros lutam para combater o sentimento de impotência que acompanha a pergunta: de que adianta continuar? Nosso jovem paciente com um corpo cheio de cicatrizes e irreconhecível estava em choque, uma experiência traumática que destruiu seu senso de identidade e obscureceu a sua capacidade de criar significância para o que lhe ocorreu.

Trabalhei intensamente com esse paciente por duas semanas, nos encontramos todos os dias. Nos três primeiros dias, esse paciente repetia a mesma narrativa: descrevendo o que o levou àquela rua, naquela manhã chuvosa, porque mudou a rota, a roupa que deixou lá fora para recolher depois que voltasse para casa, o frango na geladeira, ideias para o jantar mais tarde. Parecia uma repetição infinita, um arranhão no vinil que continua jogando a agulha alguns versos para trás na música. Uma experiência traumática, o relato da interrupção inesperada, é como estar preso no ciclo da repetição. Cada vez que você a revive, espera encontrar algo diferente.

Talvez você consiga encontrar uma diferença que ilumine a compreensão dessa experiência e talvez permita que você experimente algo mais, além do ciclo repetitivo. Para esse paciente, essa foi a percepção de que não voltaria para o jantar planejado e que outra pessoa precisaria tirar as roupas do varal. Bem, parece bobagem, é claro que depois de acordar em uma cama de hospital essa pessoa sabia que não voltaria tão cedo. No entanto, há uma diferença entre saber algo e um segundo movimento que é aceitá-lo.

Este paciente finalmente conseguiu sair do estupor e do terror do acidente. Um mês depois, esse paciente estava saindo do hospital, pronto para fazer os preparativos necessários para continuar vivendo com suas cicatrizes.

Alguns dos meus pacientes com câncer falam sobre uma segunda chance. Uma vida que não pode ser suspensa, esta vida que agora é outra e preciosa. Com a determinação de fazer as coisas corretamente, com muito medo e um enorme senso de responsabilidade. A maioria dos pacientes vocaliza a necessidade de ser uma pessoa “normal” e não ser definida pelo diagnostico câncer.

Mais uma vez, ouço a necessidade de dar sentido e construir significado após uma experiência traumática. Eles estão “lutando” contra a doença, ou “lutaram” contra ela. No entanto, eles carregam as cicatrizes e o medo de que o inimigo esteja escondido em seu corpo e revide mais cedo ou mais tarde.

Todas essas são tentativas de dar sentido a eventos infelizes e dolorosos. As perguntas e respostas que a maioria dos pacientes em atendimento hospitalar vocaliza são um exercício de construção de significado, integração de si mesmo, identidade e lugar social. Algumas estruturas de significado são mais úteis do que outras, no entanto, todos elas servem à uma função. Essa função é dar conta do lugar do acaso, imprevisibilidade e contingência em relação ao negócio de viver.

Meu trabalho é ouvir suas justaposições, hipóteses e afirmações sobre o evento significativo. É ouvir de forma muito precisa, uma presença reflexiva. Ao facilitar que o paciente se senta ouvido pelo outro, possa por sua vez, ouvir a si mesmo e ser refletido pelas palavras que escolheu adotar ou repudiar.

Uma dose de certeza vem com esse exercício de busca de sentido, é como empurrar a narrativa para a próxima linha, tirar a agulha do sulco riscado e borrado do vinil. A busca de sentido cria um andaime que permite seguir em frente e se comportar com uma bússola como guia.

O significado não apagará suas cicatrizes físicas ou psicológicas, mas pode permitir que você integre e aceite essa nova versão de si mesmo. Infelizmente, nosso sistema de saúde ainda não está preparado para atender às feridas psicológicas da sobrevivência; na maioria dos países, mal consegue atender às demandas de salvar vidas. Resta ao indivíduo continuar vivendo e se adaptar às novas circunstâncias, o transtorno de estresse pós-traumático após procedimentos médicos é real e talvez deixado muito tempo sem ser tratado.

Alguns pacientes se sentem rejeitados em sua confusão e dor, ouvem que sua vida foi salva e isso é o que importa, eles deveriam estar felizes com isso. Agora, eles estão confusos, e se sentindo culpados porque deveriam ser gratos, mas sua vida está toda interrompida e dispersa. Não há oferta para apoiá-los na reorganização das escritas em seu corpo, unificando e dando sentido às marcas deixadas. O negócio de viver requer uma coerência entre nossa experiência vivida, o significado dela e um lugar para ela no contexto social mais amplo.

Essa busca de significado está na base de todas as relações humanas. Victor E. Frankl, descreveu em sua biografia sua experiência na construção ativa de significado quando tudo lhe é tirado e sua vida é sofrimento. Em “O homem em busca de um sentido”, ele descreveu sua experiência como sobrevivente de Auschwitz e outros campos de concentração nazistas. Prof. de Psiquiatria e Neurologia, fundou a terceira escola de psicoterapia em Viena pós segunda guerra.
Em suas palavras…

O que era verdadeiramente necessário era uma mudança fundamental na nossa atitude em relação à vida. Tínhamos de aprender e, mais do que isso, tínhamos de ensinar aos desesperados, que não importava verdadeiramente o que esperávamos da vida, mas antes o que a vida esperava de nós. Precisávamos de deixar de perguntar pelo sentido da vida e tínhamos, em vez disso, de pensar em nós mesmos como aqueles que estavam a ser questionados pela vida – em todas as horas de cada novo dia. A nossa resposta deve consistir, não em conversa e meditação, mas na ação e conduta corretas. A vida significa, em última instância, assumir a responsabilidade de encontrar a resposta adequada aos seus problemas e ultrapassar os desafios que constantemente apresenta a cada indivíduo.

(Frankl, p.85)

Cada um que se apresenta aos cuidados de outro ser humano está de alguma forma sofrendo, tentando conciliar algum tipo de perda. Seus comportamentos não são disfuncionais, eles têm uma função. Na maioria das vezes a função é aliviar o sofrimento. No ambiente de assistência médica é comum ouvir a frase, aderir ou não ao tratamento médico. Alguns pacientes serão considerados como não complacentes ao tratamento, e até mesmo sabotando sua própria recuperação através da aderência a comportamentos não saudáveis.

Em meu trabalho com pacientes que precisam de apoio psicológico, ofereço a oportunidade de criar um andaime onde alguém possa se sentir seguro e no comando de sua vida. Cito Frankl “sempre houve escolhas a fazer. Todos os dias, todas as horas ofereciam a oportunidade de tomar uma decisão, uma decisão que determinava se você se submeteria ou não àqueles poderes que ameaçavam roubar você mesmo, sua liberdade interior, que determinavam se você se tornaria ou não o joguete das circunstâncias”. Bem, não cito literalmente, mas ofereço essa escolha.

Eu tento transmitir que todos nós vivemos a vida velada, sua aleatoriedade, imprevisibilidade e contingências são veladas pela estrutura social e psicológica que nos dá significado., que forma o que chamamos realidade. Infelizmente, para meus pacientes, a experiência traumática revelou isso para eles, a realidade é um véu. Em um momento, por exemplo, naquela manhã, enquanto pedalavam para o trabalho, ele estavam bem ajustado – assim como eu e você. Nos quarenta dias seguintes, a vida não fez sentido.

Sou grato por poder testemunhar a força e a determinação desses pacientes. Isso me ensina que a vida não faz sentido, você ativamente faz sentido dela. Você não precisa ter uma perna quebrada ou câncer para reconstruir o sentido da vida. Você talvez tenha um coração partido, uma família desfeita, talvez tenha perdido um ente querido que era a base de sua vida. Viver vai impor a você a mesma tarefa: se você vai ou não encontrar sentido na névoa de sua dor.