Em um mundo onde a preocupação é trabalhar para sobreviver, guiado pela inteligência artificial, onde as pessoas sem aprofundamento de estudos, acreditam apenas nos hologramas dos sentimentos, vem perdendo a espontaneidade. Mesmo assim, antes ou agora, sempre existiu e sempre existirá a busca do sentido da vida pela humanidade.
Queremos respostas prontas, queremos agilidade, queremos rapidez, queremos avançar, mas, para onde? Na canção do grupo U2, grupo Irlandês de roque criado em 1976, intitulada “O tique-taque das onze horas, “...Pensávamos que sabíamos as respostas, Mas as perguntas é que estavam erradas…” Ou seja, necessitamos aumentar nossas perguntas. Quando existe a falta de curiosidade, haverá falta de espontaneidade.
Para o sábio Rumi, “O agora é onde o amor respira”. Criamos desde cedo mecanismos de defesa, estamos sempre na defensiva. O processo civilizatório foi criado a partir de escudos para regularização de uma “ordem” criada a favor dos mais fortes. Há de se considerar que a evolução sociocultural foi ditada por padrões estéticos que não cabem mais nos dias atuais guiados pela inteligência artificial.
Como diz o escritor inglês e crítico de arte, Walter Pater argumenta, “O serviço da filosofia, da cultura especulativa, ao espírito humano é despertar, amedrontar uma vida de constante observação e desejo”. Observação e desejo, devem andar “par e passo” para que sejamos espontâneos. Reparem, quem consegue ser natural, se divertir com pouco, geralmente é visto com olhos desgastados da inveja. Na verdade, necessitamos de uma nova construção social que configure nossos valores e virtudes.
Afirma o sábio Confúcio1 em seus ensinamentos, o mestre disse:
Nunca conheci um homem que amasse a benevolência ou um homem que odiasse a ausência dela. Um homem que ama a benevolência não pode ser superado. Um homem que odeia a falta de benevolência pode, talvez, ser considerado benevolente, pois ele não permitiria que aquilo que não é benevolente contaminar sua pessoa. “Existe um homem que, pelo período de um só dia, seja capaz de dedicar toda sua força à benevolência? Nunca conheci um homem cuja força seja insuficiente para essa tarefa. Deve haver casos de forças insuficientes, mas simplesmente não os encontrei.
Assim, como nasce a espontaneidade? Então, precisamos aprender a sermos humanos. Confúcio diz que só aprendemos com muita poesia. É a partir da poesia que nos tornamos humanos. Vejam o poeta Manoel de Barros, que encontrou no seu quintal, o mundo. É cabível muita sensibilidade, liberdade com responsabilidade para apreciar a formosura de Deus. Ser livre requer responsabilidade.
Talvez o encontro da ciência com a cultura esteja na curiosidade e espontaneidade. Para os curiosos foram espontâneos no que mais gostavam, nas suas escolhas. A ciência traz a curiosidade e a cultura traz a espontaneidade, nas duas existem as metodologias necessárias para atingir o resultado do momento. Quando perguntei a um mestre do reisado do Ceará, o que é cultura? Ele respondeu que “é o maior tesouro que nós temos”. E, por que é um tesouro? Porque é carregada de espontaneidade. E a espontaneidade é um sentimento muito difícil de gerar valor financeiro.
Por isso, é importante a regulamentação e organização de projetos de políticas culturais, como o Cultura Viva, entre outros. O direito à espontaneidade, está na observação, na contemplação da natureza e do mundo. Está no perfume da rosa, que não pede licença, mas existe, e oferece a quem chegar. O direito à espontaneidade está no coração de cada um. Está em observar uma formiga, de onde vem para onde vai. Está em saltitar como uma criança sem pressa de chegar, Está em contemplar o show dos biguás, na mesma hora, mas cada um com seu movimento. Vai depender do seu olhar. Está num sorriso inesperado de uma criança.
É correr para ver um arco-íris. É simplesmente imaginar uma brincadeira, inventar um brinquedo. É ouvir a Terra. Quando forem estudar um autor, estudem a sua infância. Nela mora a espontaneidade. Joaquim Nabuco brincou com os filhos dos escravos no Engenho Massangana, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco. Tornou-se um abolicionista. Clarice Lispector, viveu em vários lugares, observando o movimento e as pessoas. Tornou-se escritora.
O professor José Pacheco, teve uma infância difícil, mas, teve a oportunidade de conhecer um novo modo de aprender com um Padre Lima, um senhor de muita visão de mundo. E, quando cresceu, se indignou com o sistema de educação vigente que não formava humanos livres e responsáveis. Tornou-se um aprendiz de utopias na educação pelas comunidades de aprendizagem.
E, você? De que você brincou e observou quando criança? Caso não tenha observado a energia mobilizadora em movimento do mundo, ainda dá tempo. Basta aprofundar-se em círculos de estudos colaborativos. Também deve-se entender de novas formas de sistema de governança, como a sociocracia, onde o poder é compartilhado, decisão operacionalizada, uso do consenso e consentimento. É uma hierarquia descentralizada, propósito de participação, escolha de zonas de preferências, numa estrutura circular a partir das necessidades da comunidade.
Veja o que dizia o escritor Liev Tolstói1:
Ninguém traz consigo alguma coisa, nem livros nem cadernos. Nenhum aluno é obrigado a fazer dever de casa. Além de virem de mãos vazias, os alunos não são obrigados a decorar lições, sequer a aula do dia anterior. Eles não se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si mesmos, sua natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola será tão alegre quanto ontem […] Ninguém jamais é repreendido por se atrasar. Eles se sentam onde querem: bancos, mesas, peitoris das janelas, poltronas. O horário prevê quatro aulas antes do jantar, que às vezes na prática se tornam três ou duas, e que podem ser sobre assuntos bastante diferentes […] Na minha opinião essa desordem externa é útil e necessária, por mais estranha e inconveniente que possa parecer ao professor […] De início essa desordem, ou ordem livre, nos assusta, porque fomos educados de outras maneiras e estamos acostumados a algo diferente. Em segundo lugar, neste como em muitos casos semelhantes, a coerção só é usada por causa de pressa ou falta de respeito pela natureza humana […]
Ou seja, numa ordem que seja livre e ao mesmo tempo responsável. Ainda escreveu Tolstói, “Que tempo poderia ser mais precioso que aquele em que a alegria inocente e um desejo ilimitado de amor são as únicas motivações da vida?” Conta a sua irmã que Tolstói apesar de ser órfão, era alegre e amoroso, encantado com a vida das pessoas. Um observador, um curioso, um espontâneo.
O direito à espontaneidade, requer o uso da nossa humanidade. Benevolência, compaixão, solidariedade, respeito, responsabilidade, entre outros valores devem ser transmitidos com leveza. Não podemos andar revidando. Chega disso! Primeiro deveremos construir acordos de convivência, pautados numa comunicação clara, no afeto, e no respeito. Construir um pensamento coletivo, digno e de cuidado com o outro. Como falou o educador Agostinho da Silva, que dedicou o seu livro, Um Fernando Pessoa, “Aos amigos de outros”. Todo esse cuidado é espontâneo. Um mundo carece de espontaneidade. Mesmo porque a agressão é fruto de uma construção social defensiva. Nunca existiu tantas homepages de autoajuda, tantos instagram de positividade e as pessoas continuam nem aí para nada.
Uma superficialidade em julgar o outro de maneira fugaz. Não argumentos com fundamento. Não há estudo aprofundado. Necessitamos de poesias. Não está fácil. O mundo anda adoecido. A educação estagnada, com propostas padronizadas em alguns casos isolados, encontramos alguém com um pensamento inovador. É preciso partilhar os projetos que são humanos que carregam o direito à espontaneidade. Este direito é um direito que vem do coração.
O Paul Lafargue construiu o direito à preguiça, como um manifesto ao vício do trabalho, onde a saída seria a diminuição das horas de trabalho. Comenta Lafargue3:
Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do indivíduo e de sua prole até o esgotamento.
Esse esgotamento até hoje é visto como acredita o escritor sul-coreano Byung-Chul Han com a sociedade do cansaço, “Estamos na Rede, mas não escutamos o outro, só fazemos barulho”, diz também, “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”
Estamos vivendo num mundo que está de cabeça para baixo. Vejam que estamos perdendo o sentido da vida, os nossos sentimentos. Taxas de violência por todos os lugares, aumento de suicidio, feminicidio, depressão entre outras melancolias.
Também temos o Direito à Ternura de Luís Carlos Restrepo, que retrata a desburocratização do conhecimento, trazendo a sensibilização da ciência com os espaços que nos rodeiam, onde ele aborda como “ecoternura.” Fala do cotidiano como o lugar de formação de laços a partir da ternura. Um direito que vale a pena seguir. E, agora, ou seja, hoje, para o presente, passado, e futuro temos o Direito à espontaneidade. Que é um direito para eternidade.
O escritor e poeta argentino, Jorge Luis Borges4, afirma que:
A eternidade não é a soma de todos os nossos ontem. A eternidade é todos os nossos ontem, todos os ontem de todos os seres conscientes. Todo o passado, aquele passado que não se sabe quando começou. E depois, todo o presente. Este momento presente que abrange todas as cidades, todos os mundos, o espaço entre os planetas. E depois o futuro. O futuro, que ainda não foi criado, mas que também existe.
Então, queremos a espontaneidade para que existam mais curiosos. Somente, com novos imaginários, novas perguntas seremos livres e responsáveis. Estamos acabando a consciência planetária, o mundo necessita de nova construção social para o despertar da sociocracia. Um novo caminho possível será iniciado na busca de solucionar problemas. Não podemos perder o que temos de melhor que é a espontaneidade.
Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.
(Carlos Drummond de Andrade)
Notas
1 Confúcio. Os Anacletos. Tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
2 Bartlett, Rosamund. Tolstói: uma biografia. Tradução de Ivo Korytowski. São Paulo: Globo, 2013.
3 Lafargue, Paul. O direito à preguiça. Tradução de Marcelo Sant'Anna. São Paulo: Boitempo, 2003.
4 Borges, Jorge Luis. Obras completas. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1999.