Não sou uma mãe jovem; tenho filhos pequenos. Falta-me a base para qualquer interação bem-sucedida: tempo, atenção e energia. Nesta época da minha vida, tenho uma carreira que exige tempo, e os incômodos fisiológicos do climatério sugam toda minha energia. Nos raros momentos em que marco como feitas muitas das minhas tarefas, como o jantar preparado, as crianças de banho tomado e o dever de casa concluído, meus filhos me lembram que falta uma de minhas tarefas essenciais – passar tempo com eles, abraços, risadas, companheirismo. Na maioria das vezes, resolvo isso oferecendo uma noite de cinema e pipoca.
Ontem foi um dia assim, em que consegui remediar com uma noite de cinema em casa. Escolhemos uma velha amiga: Moana, nossa princesa favorita da Disney. Foi lindo; eu estava com meu filho de 5 anos de um lado e minha filha de 8 anos do outro lado do meu colo. Ambos aconchegados, com travesseiros, minhas mãos nos seus cabelos, muito cafuné!
Desta vez, porém, o filme me atingiu de uma maneira diferente. Um pensamento regressivo, em busca dos meus 8 anos, tentando lembrar como via o mundo e como planejava consertá-lo. Provavelmente essa digressão foi motivada por uma citação na internet dizendo que as únicas duas pessoas que deveríamos tentar impressionar são você mesmo aos 80 e aos 8 anos. Existem muitas encruzilhadas nessa digressão. Ora, minha filha tem 8, Moana tem 8, o 8 da citação e no jogo do bicho 8 é a guia. Enfim, eu não me lembro muito dos meus 8 anos. Mas esta não é uma história sobre mim, é uma reflexão sobre ser uma menina e cruzar o vasto oceano para cumprir uma profecia. Alguns de nós tiveram sucesso, alguns de nós ainda estão lá no meio do vasto oceano, anos depois, presos nesta viagem.
Nos próximos parágrafos haverá 'spoilers' e interpretações pessoais sobre o filme, se você não viu esse clássico, pare imediatamente, pegue seus filhos ou peça emprestado algumas crianças de pais ocupados e assista. Só depois volte aqui.
Resumindo o filme, Moana é uma criança e ouve a avó contar que, há muitos anos atrás, Maui roubou o coração de Te Fiti. Depois disso, Te Fiti não foi mais a mesma, começou a desmoronar e deu à luz uma escuridão terrível. Muitos monstros vieram em busca de seu coração, todos buscando possuir o maior poder já visto, o de criar a própria vida.
A profecia diz que um dia o coração será encontrado e esta pessoa cruzará o grande oceano e devolverá o coração de Te Fiti a ela, e salvará a todos. Mas primeiro, essa pessoa tem que encontrar Maui e convencê-lo a embarcar nessa jornada, e desfazer sua má ação.
A esta altura, você está a par do destino de Moana, e sabe que a mãe, a Terra, uma outra pessoa significativa, sofreu um dano irreparável, cujas consequências afetam a todos. Moana está destinada a encontrar o coração roubado, encontrar Maui, e então convencê-lo a restituir o que roubou. Para esta menina de oito anos, há muitas relações e motivos intrínsecos para se desvendar, antes que se possa concluir sua tarefa.
Mas ninguém embarca em uma jornada de mudança de vida sem perder algo ou um lugar que o sustentou. Moana perde a aprovação do pai e, com a morte da avó, também perde a companheira com quem divide sonhos e esperanças. A avó investiu expectativas, ideais e confiança em Moana, pois acreditava fielmente que essa estava destinada a salvar todos eles. Agora Moana não tem escolha a não ser provar que foi a escolhida e fazer o que se espera dela.
São muitas músicas, perigos e momentos engraçados durante sua jornada. Mas se a viagem fosse fácil, não precisaríamos de fantasia, Disney e contos de fadas. A jornada de todos nós que saímos da zona de conforto para provar a nós mesmos que somos dignos, que somos merecedores do amor, sempre chega ao ponto da impossibilidade. Este ponto de ruptura, onde nos encontramos fazendo algo por um motivo, porém não temos mais certeza se esse motivo é o nosso desejo, a nossa missão, o nosso destino ou alguma ilusão.
Aí paramos de perseguir, ficamos olhando para o nada, incapazes de ser felizes e desfrutar das nossas conquistas. Às vezes ouço durante a consulta com mulheres em tratamento de câncer, climatério, doenças crônicas, elas relembram os sonhos e aspirações que já tiveram, as mensagens implícitas que as guiam através das condições de amor e valor. Há muito sofrimento quando se depara com a questão da autenticidade, de viver a vida por si mesmo, pela sua verdade. Esta é a vida, a jornada em que você está. Às vezes, é necessário se perguntar por que você escolheu ou se você está vivendo a vida que os outros, através de sua condição de amor, impuseram a você.
Moana nos mostra gentilmente que é muito difícil e doloroso decepcionar as pessoas que amamos. No entanto, não há como escapar deste rito de passagem. Nesse momento, sua vida, suas conquistas e felicidade são todas, e somente sua responsabilidade.
Moana fez tudo o que era esperado dela, agarrou Maui pelas orelhas, disse: "Eu sou Moana de Motunui, você vai embarcar no meu barco, navegar pelo mar e restaurar o coração de Te Fiti". Maui foi junto, mas com medo de perder a identidade, decidiu deixá-la e não cumprir a tarefa. Este abandono sinaliza que ela não é a escolhida, não é onipotente – ela não pode instigar seu desejo nos outros. De uma forma ou de outra, todos nós não sentimos essa dor?
Essa enorme decepção leva Moana à travessia de sua impossibilidade. Ela desiste da tarefa que sua avó lhe impôs, apenas para retomar o mesmo dever sob uma nova perspectiva. Prefiro não me apressar neste momento, porque é muito bem feito e muito sutil.
Maui foi embora, dizendo a Moana que tudo foi um erro, ela fica com o coração partido e desiste da tarefa. Moana pede ao oceano que escolha outra pessoa, ela diz não. Essa pequena interação é tão importante! Devemos, em algum momento da nossa jornada, dizer – não. Não! Não sou aquela pessoa superforte, que vai aparar todo mundo e fazer tudo o que se espera de mim. Não! Estou cansada de fazer isso e aquilo, para satisfazer a condição de ser amada e aceita. Não! Não vou continuar esse relacionamento abusivo por medo de ficar sozinha. Não! Não vou me silenciar, sufocar para que você possa ficar em paz. Há tantos “nãos” importantes que deveríamos dizer a nós mesmos, em meio às nossas repetições que nos mantêm num ciclo de sofrimento.
Pois bem, Moana tem então a oportunidade de dialogar com o seu desejo – o desejo da avó. A avó pede desculpas, não é culpa sua. Moana está aliviada do fardo e agora pode voltar para casa. Moana hesita. Algo na rejeição do desejo da avó, e no desabafo dele, transforma a jornada de Moana em algo que a define. Agora é a sua jornada, a sua escolha e o seu desejo.
A avó canta: “Às vezes o mundo parece contra você. A viagem pode deixar uma cicatriz. Mas as cicatrizes podem curar e revelar exatamente onde você está. As pessoas que você ama vão mudar você. As coisas que você aprendeu irão guiá-la. E nada na terra pode silenciar a voz calma dentro de você. E quando aquela voz começa a sussurrar, Moana, você chegou tão longe, Moana, escute, você sabe quem você é?
Aqui encontramos a pergunta que todos nós encontraremos, mais cedo ou mais tarde: Sabemos do que se trata a nossa vida? Caso a vida acabe agora, será que podemos dizer que vivemos?
Nesse ponto, Moana não tem dúvidas. Não se trata de Maui ou da avó; trata-se dela e de seu desejo. Ela muda tudo, da única maneira que é possível. Ela se afirma e define seu lugar em sua narrativa. Ela não é mais uma passageira de sua história; ela passa para o lugar de agente. Este momento crucial e definidor é completado com o restabelecimento da tarefa: “Eu sou Moana de Motunui. A bordo do meu barco navegarei pelo mar e restaurarei o coração de Te Fiti.”
Devo dizer que, a esta altura, estou em pedaços. Estou emocionada e torcendo. Olho para meus filhos; todos nós estamos extasiados com a coragem dessa menininha. Isso me lembra de muitas pessoas que conheci passando por transições difíceis em suas vidas, desde doenças até problemas familiares e perdas insuportáveis. Pessoas no mar atormentado de suas vidas, agarradas à única coisa que realmente lhes pertencia, o seu barco – ou seja, o seu corpo, a sua razão de viver.
Se há uma única coisa que quero comunicar, depois de conhecer muitas Moanas ao longo da minha carreira, é que nos tornamos o personagem principal da nossa história quando assumimos a responsabilidade por nossas escolhas. Sem essa virada, esse amadurecimento, ficamos apegados às expectativas e anseios do outro, apenas respondemos às imposições da vida. Para viver, precisamos responder a partir do nosso desejo.
A jornada de Moana não termina aí. Ela restaura o coração de Te Fiti, e então... bem, isso exigiria outro texto sobre o coração da mãe e suas implicações para o sentimento de segurança e amor da criança. Talvez relacionado à criança interior dentro de todos nós.
Enfim, nunca estamos velhos demais para as aventuras do amor próprio e para as princesas da Disney.