Pessoa é daqueles poetas da língua portuguesa que buscamos ao querer achar a palavra certa para o reto momento ou para a exata situação... Sempre a frase que cai como uma luva, simultaneamente elaborada e simples. De uma simplicidade muitas vezes desconcertante, mas não menos forte e precisa... Um dizer filosófico capaz de fazer refletir e até de causar um certo desassossego (para usar uma palavra tão sua). E que passados oitenta anos de sua chegada ao céu dos escritores, continua tão atual quanto amanhã seria.
Não nego... Fã de carteira assinada e deliberadamente sem dia de folga. Lido e citado desde cedo, desde a adolescência. Sempre uso, em diversas situações, um dos que considero dos seus mais profundos versos, que brinca ricamente com as possibilidades poéticas da língua pátria: “Comer um fruto é saber-lhe o sentido”... As possíveis significações dessa simples frase são tamanhas! E nessa afirmação de Pessoa, podemos vislumbrar o viver como um fruto que se deve experimentar em seus sabores e saberes (palavras de mesma origem etimológica), como me dei ao sabor da exposição e venho dividir a alegria da experiência...
A exposição, inédita, está montada no Museu do Estado de Pernambuco – MEPE e se soma às diversas iniciativas neste ano de intensas comemorações em torno da obra do poeta luso. Não só pelos já citados 80 anos de seu desaparecimento – que se completam em 30 deste novembro, mas também pelos 100 anos do lançamento da Revista Orpheu, a qual Pessoa dirigiu e cujo teor surpreendeu e quebrou paradigmas na Lisboa de 1915, tornando-se um marco.
Na trilha das comemorações, a exposição do MEPE: “Fernando Pessoa – uma coleção” surge como uma festa em alto estilo que se estenderá até o dia seis de dezembro. O grande inusitado é que ela surge inédita, gestada aqui mesmo na cidade e saída de um rico acervo pessoal; da casa do jurista e escritor premiado, apaixonado pela obra de Pessoa e seu primeiro biógrafo no Brasil: O pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, autor do livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”.
Membro da Academia Pernambucana de Letras, Cavalcanti é “O colecionador” que assina o texto de abertura do belo encarte da exposição, como numa reverência aos tantos heterônimos do poeta português. Sua pesquisa para a elaboração da biografia fez surgir o acervo invejável sobre o poeta luso.... Por mais de dez anos o colecionador reuniu objetos, escritos, fotos, postais, livros, frequentando ou se fazendo representar em leilões pela Europa, adquirindo as raras peças originais, muitas delas do acervo pessoal do poeta. Algumas peças da exposição são quase “inacreditáveis”, considerando sua importância e raridade.
A curadora Renata Pimentel, em seu texto de apresentação, sintetizou o Pessoa “gente” e o reflexo do ser sobre a obra, em muito do que se vê retratado na exposição: “Homem reservado, mas criador voraz, com uma imensa e densa obra em poesia, em prosa, em dramaturgia, em pensamentos e ensaios inequivocamente filosóficos. Uma obra que se confunde, se amalgama com sua vida”.
Já Cavalcanti cita em seu texto do encarte da exposição o poeta Ricardo Reis (um dos heterônimos de Pessoa): “O passado é o presente na lembrança”... E de fato, parece que o passado vira presente no instante da observação das diversas peças que compõe a exposição, que se entrelaçam numa malha imaginária, recriando percursos da vida de Pessoa. Essa teia cognitiva vai unindo vida e obra do poeta diante dos olhos e na imaginação dos visitantes... Um caleidoscópio de elementos que giram não só em imagens, mas em sons, letras, objetos e história, na construção da significação do todo... E por falar em todo, "completude" tem sido a palavra mais usada pelo colecionador e por várias pessoas de quem ouvi comentários, ao se referirem à exposição, que conseguiu compor e traduzir as múltiplas faces desse artista das letras. Tudo isso em 400 metros quadrados, entre a montagem principal no pavimento superior e a mostra paralela no térreo do Pavilhão Cícero Dias.
Estão expostos documentos originais como manuscritos, cartas, selos, postais, fotos de família, seus livros, objetos pessoais, suas traduções e também alguns livros que lia, oriundos de sua biblioteca pessoal, como “Eles e Elas”, de Júlio Dantas, edição de 1918 ou a raridade “Sonetos Escolhidos”, de Bocage, edição de 1921, exemplar que Pessoa trazia no bolso do pijama, ao falecer.
A Revista Orpheu, agora centenária, que se propôs trimestral mas que teve sua publicação descontinuada na segunda edição, ocupa um lugar de destaque na exposição: primeira e segunda edições presentes no acervo reacendem os comentários sobre os poemas de vanguarda e textos que viriam a se transformar na porta de entrada para o Modernismo em Portugal, não sem receber duras críticas e causar grande reação, à época. Pessoa publicou na Revista Orpheu vários textos, alguns com seu próprio nome e outros com heterônimos, a exemplo de Álvaro de Campos, iniciando um longo caminho de personagens que criava, pelos quais pensava, escrevia e assinava.
Essa pessoa múltipla, que foi capaz de criar 127 heterônimos, cada um deles com sua personalidade própria é facilmente captada na exposição, em suas diversas faces: O poeta, o escritor, o astrólogo, o homem comum. A pessoa que escreve cartas aos grandes amigos, como Antônio Botto e Luís de Montalvor, ou o Pessoa que “treina” a assinatura de um heterônimo (Ricardo Reis), buscando atingir a naturalidade e perfeição na construção do personagem...
Na noite de inauguração esteve exposta a raríssima primeira edição de um dos livros preferidos de Fernando Pessoa: Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (Edição E/E 1572 totalmente íntegra), substituído pela segunda edição, conhecida como edição “dos Piscos” (1584) a partir do segundo dia de exposição.
Pessoa colecionava postais e selos e esse hábito está representado na exposição através de exemplares originais de seus “guardados”. Também muitos de seus livros de autoria e textos traduzidos para o inglês, a maioria espalhados em folhetos ou revistas. Há também exemplares dos quatro livros prefaciados por Pessoa: “Alma Errante” de Eliezer Kamenesky (1932); “Motivos de Beleza” de Antonio Botto (1923), “Acrónios” de Luiz Pedro (1932) e “Quinto Império”, de Augusto Ferreira Gomes (1934). Outro elemento de destaque é o original de uma famosa caricatura de Fernando Pessoa desenhada por Almada Negreiros na noite do enterro do poeta, no restaurante Martinho da Arcada e doado ao seu grande amor, Ophélia Queiroz.
O projeto expográfico ficou a cargo dos designers Otávio Falcão e Rinaldo Carvalho, este último também artista plástico com obra exposta na mostra paralela que acontece no térreo do pavilhão. Os ambientes criados para a exposição trazem a sobriedade do marrom, do ocre e de tons de bege em sua composição, suponho que em aderência à personalidade densa do poeta.
Não se pode esquecer que o MEPE recebe inúmeros estudantes e a montagem da coleção buscou atingir a todos os públicos, de curiosos a conhecedores da obra de Pessoa. Na linha do tempo, por exemplo, utilizou-se o recurso das ilustrações, a fim de torná-la mais explicativa e de fácil entendimento.
Na mostra paralela intitulada “Fernando Pessoa – Vida e Obra”, os 50 artistas, entre pintores, escultores e fotógrafos que se inspiraram em Pessoa “falam” da obra do poeta em muitas cores e diferentes formas. Os trabalhos se encontram à venda e parte do que for arrecadado com sua comercialização será destinada à Sociedade dos Amigos do Museu do Estado - SAMPE.
Ainda na exposição principal, um canto destinado às “selfies” dá o toque de irreverência e descontração ao ambiente. A imagem bidimensional do poeta, em tamanho natural, vendo-se Lisboa ao fundo, chama para uma foto. E plaquetas indicando “Exposição Fernando Pessoa. Eu visitei” estão disponíveis para as fotos dos visitantes sorridentes e orgulhosos de ali terem estado e poderem se fotografar “ao lado” de Pessoa. Na noite inaugural um ator caracterizado como o poeta circulava pelos ambientes.
Em dois pontos da área de exposição, caixas de som colocadas acima das cabeças dos visitantes pendem do teto, deixando ouvir poemas de Pessoa ditos pelo falecido ator brasileiro Paulo Autran e pelo português João Villaret. Ao passarmos sob os som, automaticamente somos atraídos a nos deixarmos ficar para ouvir o que se diz: pura poesia.
Há também um pequeno ambiente reservado em que são exibidos sem interrupção dois vídeos sobre Fernando Pessoa: o documentário Desassossego, da TV portuguesa e projeções de alguns de seus poemas. Na realização da exposição “Fernando Pessoa – uma Coleção” o Museu do Estado de Pernambuco contou com o apoio da Embaixada de Portugal no Brasil, do Consulado de Portugal no Recife, do Instituto Camões, do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, das Academias Brasileira e Pernambucana de Letras, da Sociedade Pernambucana Eça de Queiroz, do Real Hospital Português e da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco. De Portugal também a Calouste Gulbenkian Foundation, a Casa Fernando Pessoa e o Jornal de Letras, Artes e Ideias prestaram o seu apoio.
Os pernambucanos estão reverenciando o poeta e fazendo as justas homenagens neste aniversário. Ainda este mês, outro importante evento lembrou Pessoa: A 11ª edição da festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), que ocorreu na vizinha cidade de Olinda. Na ocasião, outra exposição, esta denominada "Nós, os de Orpheu" trouxe para o público manuscritos e correspondências da revista.
A exposição "Fernando Pessoa: uma coleção" traz dados, nuances, faces e letras de Pessoa. Uma face astrólogo, além de poetas (e com “s” mesmo, posto que plural); outra face amigo, outra amor.
Um quê de misterioso, um quê de triste. Um traço rico, outro frágil. Um pouco de míope e muito de visionário. Visitar a exposição “é desvendar um pouco do muito de Fernando Pessoa e suas múltiplas faces. Como num jogo, Pessoa se materializa a cada elemento compreendido. Torna-se um todo presente, falando do passado de modo belo e absolutamente útil.
Diante de tão intensa experiência, resta-me convidar a que comamos este fruto, sintamos o seu sabor para, então, sabermos-lhe o sentido.