Em mais um momento despretensioso diante de um jogo eletrônico, fui levado a uma reflexão sobre vida e morte. Shadowlands (2020), a oitava expansão de World of Warcraft — o MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game) mais antigo e bem-sucedido do mercado — traz como temática o pós-vida (ou pós-morte?). Shadowlands é o reino para onde as almas vão após a morte, onde são julgadas e, em seguida, enviadas a uma das quatro subáreas onde passarão a eternidade.

No início da expansão, o árbitro — a entidade responsável por julgar as almas — é encontrado adormecido, fazendo com que todas as almas recém-chegadas sejam enviadas à Gorja, um território de condenação e tormento eterno.

O diálogo que me chamou a atenção envolve dois personagens das facções opostas do jogo: Aliança e Horda. Anduin Wrynn, um humano e rei da Aliança, é sequestrado por Sylvanas Windrunner, uma “elfa morta-viva” e ex-líder da Horda. Ex-líder, pois Sylvanas se alia ao inimigo da expansão, o Carcereiro, traindo sua própria facção.

Confrontada por Anduin, Sylvanas oferece uma visão da morte profundamente interessante, que ressoa com discussões filosóficas que têm como tema central a própria morte. A seguir, um trecho do diálogo:

[...] Sylvanas: Você é uma arma que usaremos para atingir nossos objetivos.
Anduin: Não me tornarei um instrumento de morte.
Sylvanas: Então você é a favor... da vida, é isso? Aquela piscadela momentânea. Cada segundo cruel gasto tentando atrasar o inevitável, numa guerra sem fim à qual, como todos os Wrynn anteriores, você não sobreviverá. Você sabe a verdade. Nada é justo. Nem a vida, nem a morte. Então, vamos destruir tudo.
Anduin: E a que propósito isso servirá? Todos sofrem, Sylvanas. Mas destruir tudo não eliminará a dor.
Sylvanas: Ah, você entendeu errado. Estamos quebrando um sistema que sempre foi falho e transformando-o em algo justo.
Anduin: Você espera que eu acredite que, durante todo esse tempo, você lutou por justiça? Sylvanas suspira.
[...]

A visão de Sylvanas sobre a morte sugere uma imortalidade da alma, onde, ao considerar a totalidade da existência de uma alma, o breve momento em que ela está “viva” é apenas um piscar de olhos. E mesmo esse momento, ela argumenta, é consumido pela preocupação e pelo esforço de adiar o inevitável: a morte.

A reflexão levantada pelo diálogo entre Sylvanas e Anduin em Shadowlands de World of Warcraft abre um leque de questões filosóficas universais: o sentido da vida, a inevitabilidade da morte e, sobretudo, a justiça no sistema que rege essas duas experiências inevitáveis da existência. Na Filosofia, poucos temas têm gerado tantas especulações e confrontos teóricos quanto a relação entre vida, morte e a tentativa de transcender a angústia da finitude.

Sylvanas, ao reduzir a vida a um “piscar momentâneo” diante da eternidade da existência pós-morte, ecoa um pessimismo nietzschiano, questionando os valores que sustentam a “celebração da vida”. Segundo ela, a existência não é mais que uma luta incessante para adiar o fim, mascarada por ilusões que se esvaziam diante da morte inevitável. Sylvanas não ignora a dor do existir; ao contrário, busca desmantelar um “sistema” que ela enxerga como inerentemente falho e injusto. Essa perspectiva sugere uma aproximação com os existencialistas, como Sartre, ao reconhecer a ausência de uma justiça intrínseca no cosmos, algo que a humanidade frequentemente tenta impor.

Contudo, a posição de Anduin contrapõe Sylvanas com uma visão mais próxima de um humanismo ético. Ao enfatizar que “todos sofrem, mas destruir tudo não eliminará a dor”, ele defende um sentido resiliente para a existência que não depende de escapar da condição humana, mas de encontrar propósito dentro dela. É aqui que ressoam ecos de pensadores como Albert Camus, que argumenta que, diante da absurdidade da vida, nossa tarefa não é destruir o mundo, mas encontrar força para vivê-lo plenamente. A “revolta” de Camus diante do absurdo não é uma revolta que destrói o sistema em sua totalidade, mas que se posiciona contra o desespero resignado.

Há ainda, no posicionamento de Sylvanas, um questionamento que lembra Platão e seu conceito da alma imortal: ao propor que a morte não é o fim, mas um simples trânsito para um estado posterior de existência, ela enxerga na mortalidade humana uma etapa quase insignificante dentro de uma jornada maior. No entanto, Sylvanas rompe com o otimismo platônico ao negar que a justiça ou a ordem do cosmos guiem esse processo — em vez disso, afirma que o “sistema” celestial é tão arbitrário e falho quanto a vida terrena.

Emerge, aqui, uma tensão que atravessa os séculos de debate filosófico: a destruição do “sistema falho” proposta por Sylvanas seria uma revolução legítima contra o que é percebido como arbitrário e injusto ou apenas uma destruição pelo desespero? Sua proposta reflete, em parte, uma visão quase escatológica de regeneração, na qual a destruição total é vista como necessária para um reinício justo. Essa ideia encontra eco, embora distante, na ideia de tabula rasa de Rousseau: a possibilidade de reconstruir a ordem sobre uma base completamente nova. Porém, Anduin chama atenção para um perigo latente nessa destruição: a perpetuação de dor e sofrimento que tal ruptura traz, potencialmente sem oferecer, de fato, a justiça que Sylvanas almeja.

A relevância desse diálogo transcende o contexto fictício de World of Warcraft. Ele explora o cerne do que significa ser humano, convidando-nos a confrontar questões existenciais sobre mortalidade, sofrimento e o papel do indivíduo frente aos sistemas — sejam sociais, políticos ou metafísicos. Em última análise, o embate entre Sylvanas e Anduin retrata o dilema fundamental que permeia a experiência humana: a luta para encontrar justiça e sentido diante de uma realidade caótica, na qual a vida e a morte parecem, à primeira vista, destituídas de qualquer ordem maior.

Se Sylvanas opta pelo niilismo transformador e destrutivo, Anduin oferece uma resistência ética à destruição completa, um convite a procurar justiça não na perfeição, mas no aprimoramento constante e compassivo do mundo.

Assim, Shadowlands faz mais do que entreter: convida o jogador a refletir sobre qual papel assumimos na travessia da existência. Estamos construindo ou destruindo? A escolha, no fim, sempre foi nossa.