A riqueza cultural brasileira é inquestionável e marcada pela intensa diversidade de cores, sabores, ritmos, sons, cheiros, simbolismos e tradições. Quantas raízes históricas e culturais presenciamos expostas nas manifestações, ritos e festividades em cada canto desse país! E como são fundamentais para a perpetuação da memória, para a produção e para o fortalecimento identitário das suas comunidades! Não são apenas espaços festivos onde se “co-memora” algo, pois apresentam cotidianamente elementos transgressores que reforçam memórias contrárias ao paradigma hegemônico. A cultura é sempre um ato de resistência!

O Carnaval é nossa festa popular mais consagrada, porém é também a mais massificada. Ainda vemos manifestações carnavalescas genuínas, mas são rapidamente absorvidas a fim de virarem produto comercial de mídia e turismo. Outras festas populares conseguiram manter-se mais fiéis as suas raízes e a sua identidade. Porém, como estão fora da mídia popular e do turismo comercial, ainda são pouco conhecidas e apreciadas.

É o caso do Congado, manifestação cultural caracterizada por Mário de Andrade como um “teatro musical”. O grande modernista fez uma definição brilhante, pois o que vemos nos Congados são grandes bailados dramáticos, regados a música, religiosidade e História.

As comunidades congadeiras incorporam os personagens de reis, rainhas, coroados, portas-bandeiras, juízes, capitães, alferes, dançantes, acompanhantes, cantadores, caixeiros que, juntos, formam uma Guarda do Congo ou de Moçambique. O Congado não existe sem uma comunidade. Ele é uma manifestação direta do povo, onde incorporar esses personagens é um motivo de grande orgulho e demanda uma grande responsabilidade.

A origem do Congado é múltipla como o país que o fez nascer. É fruto da tradição africana de realização de grandes cortejos dançantes e musicas aos seus reis, juntamente com a tradição portuguesa católica de simulação da luta entre mouros e católicos e de demonstração de devoção aos seus santos.

Numa sociedade marcada pela escravidão, onde inúmeros africanos eram arrancados de sua Terra e de suas raízes, o Congado representava muito mais que uma mera festividade. Era uma forma dos negros escravizados e libertos expressarem quem e de onde eram, guardarem a sua memória e a sua História.

Alguns viajantes estrangeiros em visita ao Brasil presenciaram essas manifestações e, numa mescla de estranhamento, preconceito e admiração, expressaram o que viram. Em 1851, o naturalista alemão Hermann Burmeister, que visitava o dinamarquês Peter Lund em Minas Gerais, assistiu a um Congado e assim registrou em seu diário:

A 8 de junho, iniciam-se, em Lagoa Santa, os grandes festejos de Nossa Senhora do Rosário. Durante essa festa, o escravo sai, por alguns dias, da situação de oprimido para sentir-se não somente livre, mas também um homem forte a influir nos destinos do mundo. Os escravos escolhem entre si um ‘rei’ e uma ‘rainha’, sempre escravos legítimos e não pretos livres, os quais também participam da festa. O povo nomeia então o “casal real” e os ministros, os “príncipes” e as “princesas reais”, “damas” e “cavalheiros da Corte” e todos os que hão de pertencer à “Corte” do novo “rei”. Cada um desses “dignitários” se enfeita da melhor maneira possível, usando velhas fardas e mantas, calçados de seda e tudo o mais que pode descobrir, dando-se grande valor aos enfeites de ouro legítimos e aos diamantes. Na casa do Dr. Lund, vi a filha do seu mordomo ostentando no pescoço e nos braços correntes de ouro de considerável valor, e também brincos. Em tal ocasião, um ajuda ao outro – os pais aos filhos, os mais velhos aos mais moços – mas somente o pessoal que faz parte da “Corte” se apresenta assim com jóias. O “rei” usa uma coroa de papelão dourado e um cetro, enquanto a “rainha” apresenta-se cingida por um rico diadema; os “dignitários” costumam usar chapéu de dois bicos. Acompanhado por toda a sua corte, o ‘rei’ desfila pela localidade em solene e alegre procissão, ao som de uma banda de música, com estandartes e cantores e dirige-se até a igreja onde recebe a benção do padre. O cortejo continua depois, terminando tudo num lauto banquete. O patrão da “rainha” costuma pagar as despesas do festim, sendo os demais gastos e os emolumentos da igreja custeados com fundos obtidos por meio de uma coleta. A festa continua noite adentro com danças e novos desfiles à luz de archotes, prosseguindo os divertimentos até que os meios escasseiem e a fadiga e o sono vençam os participantes. Depois a vida entra novamente nos eixos: o ‘rei’ depõe a coroa, a ‘rainha’ tira o diadema, os ‘dignitários’ despem suas vistosas fardas e as joias são restituídas aos cofres. Essa festa de pouco interesse para os brancos é de grande importância para os pretos, e nenhum destes aceitaria trabalho em tal período nem que se lhes oferecesse uma fortuna. E os espectadores não faltam; brancos, mulatos e pretos ouvem durante dias o cantarolar monótono de centenas de vozes. A Festa de Nossa Senhora do Rosário é a maior do ano na vida do pobre escravo.”

A mistura da religiosidade africana com a católica era uma forma de comunicação com a cultura portuguesa e branca, uma demonstração do dinamismo e criatividade natural das manifestações culturais, além de ser uma forma de sobrevivência. Isso porque o Cristianismo, assim como a Língua Portuguesa, era uma imposição e não uma opção. Aliar-se à religiosidade católica era uma forma de manter viva a sua própria tradição.

Nas suas múltiplas variantes, os Congados prestam homenagem aos “santos dos pretos” como Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito. Segundo a crença, as Guardas do Congo e de Moçambique se formaram ainda na África, quando uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. O grupo do Congo se dirigiu para a areia e, tocando os seus instrumentos, conseguiu fazer com que a imagem se movesse para frente. Então vieram os negros moçambiqueiros, batendo os seus tambores, cantando para a Santa e pedindo-lhe que viesse para protegê-los. A imagem teria atendido aos apelos e se deslocado lentamente para a praia. Os Congados representam esse momento e também a vida de São Benedito e a luta de Carlos Magno contra os mouros.

Há também histórias que relatam o aparecimento da imagem de Nossa Senhora do Rosário no Brasil para os negros escravizados. Esse tema é constantemente narrado nas músicas e relatos dos congadeiros. Muitos defendem que o Congado chegou às terras mineiras através de Chico Rei, rei africano trazido como escravo para o Brasil no século XVIII. Em Vila Rica (atual Ouro Preto) teria comprado sua alforria e explorado uma mina já desativada. Como havia ainda muito ouro, Chico Rei ficou rico e libertou muitos outros negros. Grande devoto de Nossa Senhora do Rosário, organizou a primeira festa em homenagem à santa em 1747.

As manifestações populares vão muito além da comemoração em si. Elas são fundamentais para preservação da memória coletiva de um povo. Quando as pessoas se encontram para demonstrarem a sua fé ou simplesmente celebrarem de determinada maneira, acontece a mágica da confluência de afetos, histórias, expectativas e identidades dos participantes. Nesses momentos, cria-se uma unidade e todos se reconhecem como herdeiros de uma cultura própria e comum. Em um país múltiplo e mesclado de etnias e culturas, não há como não nos reconhecermos em manifestações culturais tão puras e legítimas como o Congado. Vale a pena descobri-lo e nos descobrir nele.