No debate académico, no que à Escola concerne, (de agenda intencional de segundas intenções?) sobre a tensionalidade entre didática e cientificidade, pendo para esta, quando a conjugalidade de ambas parece divorciada, fora do ‘melhor dos mundos’, para onde habitualmente emigram as retóricas de docentes desiludidos. Consigo, sobretudo. Não raro, o elogio absolutizador da didática degenera em ‘fogo de artifício’ pedagógico, que baixa o nível (vocabular, desde logo) em razão da (suposta) incapacidade dos destinatários, sem querer reconhecer que, deste modo, a mesma se perpetua. Em nome ainda de uma superficialidade criativa, que visa apenas uma popularidade sossegante entre pares e autocêntrica, se pensada a partir dos alunos, absolutizando as espontâneas análises agradáveis destes sobre o «porreirismo» dos mestres. Falo por mim e para mim. Primeira declaração de interesses colocada em letra.

(Re)comecemos, centrando atenções no maior número de sujeitos que fazem o quotidiano educativo – os alunos. Como justificar que essa imensa mole de histórias diversas seja acefalizada e idealizada como simples folha em branco passiva, atriz de um processo unidirecional de ensino-aprendizagem?

Segunda declaração de interesses: escrevo a partir do quadro do ensino profissional, organizado de modo modular, centrado em avaliar competências e fazendo dos conteúdos meios para estas e não fins em si mesmos. Logo, esta moldagem é um caminho, diferente à partida, mas não melhor ou pior. A partir desta especificidade observacional e operacionalizante, entendo a dinâmica pedagógica como um encontro entre uma proposta de pedagogos e a perspetivação que os alunos fazem do seu percurso académico. Nessa medida, crescerá a autonomia destes e diminuirá o ascendente daqueles (sem ser eliminado ou substituído), na proporção do avanço temporal do percurso.

Colocadas tais considerações preambulares, defendo e discuto, como primeira ideia, o imperativo de expor os alunos a experiências criativas, diversas e amplas, sem obsessiva preocupação com os resultados. Muita desta focagem na métrica e na burocracia situa-se a considerável distância do superior interesse dos alunos. Trata-se de uma exigência política estrita, de um autoritarismo que não tem capacidade de escrutinar as suas decisões, nem dá a ver manifestas evidências avassaladoramente significativas e transformadoras das personalidades privadas e políticas daqueles que as recebem como cobaias acríticas de sucessivos experimentalismos.

Não se advoga aqui o óbito de planos nacionais ou locais de educação. Mas, desde logo, deve distinguir-se, sob pena de patologicamente se confundir, a generalidade do nacional e a (tendencial) especificidade do local. Nesse sentido, a letra deve ser captada no seu espírito, para que não obstaculize a criatividade adequada a pessoas, tempos e espaços. O documento, além de garantir a conformidade com a lei, tem de ser unidade no essencial, ponte, desafio explícito a mais e margem para que as implicitudes criativas germinem e aconteçam. Apenas como réstia de inevitabilidade pode ser catecismo dogmático para seguir ao pé da letra para os pedagogos desalentados e desistentes, no sentido de garantir a qualidade dos mínimos àqueles que têm direito ao máximo.

Em sintonia com isto, a obsessão com a burocracia transforma o professor em fim, descaraterizando-o no seu papel de meio facilitador. Ter a ‘escrita em dia’ equivale a ter as ‘chefias’ controladas, a furtar-se à vigilância e ao escrutínio, a fazer carreira no silêncio confortável, mesmo e se os papeis não correspondam à prática. Uma e outra, lei e burocracia cegas, absolutizadas e acríticas, contribuem para esvaziar o sujeito docente, subalternizando-o a uma lógica corporativa, peça de uma engrenagem onde a maior parte são entes anónimos, a engrossar os vales de lágrimas e os muros de lamentações.

Querer colher o sucesso métrico dos alunos é meta curta e demasiado simplista, preocupantemente parcelar e desumanizadora, diante da teia de complexidade que é a vida de cada estudante. E, contra mim falo, tem, não raras vezes, a ver com a ideia de querer avaliar, de modo instantâneo e pragmático, a qualidade e a competência do trabalho docente. Como se não existissem outros indicadores, que estão para além da nossa capacidade avaliativa e são muito mais consistentes. Como a curiosidade suscitada nos alunos e a busca que estes possam empreender, movidos por essa sede de descontentamento que o professor semeou na sua mente. Ou a capacidade de perguntar, de duvidar, de olhar segundo uma perspetiva diversa, mesmo e sobretudo quando as respostas não surgem e os alunos (e professores) se sentem a tocar terreno que não dominam.

O professor é o agente da sementeira e não da colheita, instrumento e não fim, ponte que não cobra a chegada a nenhuma das margens ou a prossecução de nenhum percurso. Absolutizar dogmaticamente um caminho, empobrece esse, ao mesmo tempo que inibe os restantes. Expor os alunos a experiências criativas, diversas e amplas, implica, em simultâneo, advogar a existência de professores-Sujeitos, não soberanos, mas não subalternizados a uma qualquer hétero-soberania. Competentes e criativos, proponentes e crentes (nos alunos e em si, sobretudo), afetivos e envolventes (de sujeitos e instituições diversas), a perceber as metodologias e regras como mínimo, para que o todo, cada um e o essencial funcionem. Muito daqui pode nascer o diferenciado, o qual, não raro, coincide com o descomplicado.

No processo de ensino-aprendizagem são inegociáveis os rigorosos conteúdos científicos. Tomo a liberdade de lhe acrescentar o adjetivo de pertinentes, no que concerne à amplitude etária onde navego na prática pedagógica. A especificidades e especializações mais intrincadas e finas ficarão para outras buscas e ulteriores opções de especialização. Por agora, a ideia de uma certa polivalência de curiosidade aguçada, parece-me suficientemente simpática. E empática, já agora. Carecia, um sonho no ensino secundário, de tempo e espaço de mentoria individual dos alunos, para que, para lá do percurso comum da turma, cada um tivesse oportunidade de desenhar o seu. Num misto de liberdade e desafio instigado.

Tenho para mim que a maior lacuna do ensino atual é não fazer cada aluno dar conta da sua sede. Deixamo-nos iludir todos – a começar pelos adultos responsáveis – que a democratização digital do conhecimento empanturra de tal modo cada sujeito de informação, que sacia a sua sede de curiosidade. Parece inegável ilusão. Formar gente curiosa, que tenha dúvidas e pense, que se habitue ao contraditório, que exercite o argumentário, exige que se vá além da formatação de um programa, fazendo deste um mínimo (não um máximo) e um meio (não um fim). Neste pacote dos conteúdos, coloco, sobretudo, os conceitos como núcleo irredutível fundamental. Serão eles a ferramenta capaz de propiciar três coisas que reputo de essenciais: investigar e aprofundar assuntos, discutir de forma fundamentada temáticas e escutar ou ler algo sobre elas de modo apreensível, suficientemente poroso e crítico.

Adjetivar os conteúdos de pertinentes, redundará na transformação dos mesmos em competências. Estas apenas se adquirem e exercitam se os alunos forem expostos à necessidade de resolver problemas, que não são apenas teóricos. Para tal, a realização de tarefas e a construção de projetos vai emergindo como oportunidade privilegiada e favorável para a aquisição e aplicabilidade de competências. Aprende-se a ler, lendo, a escrever, escrevendo. Aprende-se a ser, sendo. Sempre que o ambiente de ensino se apresentar como uma ‘bolha’ afastada da mundividência e demasiado pouco semelhante a esta, desaprende-se, porque a motivação e a lógica do que se ensina-aprende é insuficiente na causa para produzir o efeito idealizado.

Fora da sala

A Escola, como ideia e espaço, não é redutível à sala de aula como contexto. Existem, e precisam de ser valorizados e potenciados como tal, todos os outros espaços escolares que são igualmente momentos e lugares de ensino-aprendizagem. E sempre, não apenas ocasionalmente. E, já agora, as imediações da Escola, porque esta não é um edifício, mas um projeto e uma dinâmica que existe apenas quando está ‘de turno’. Do mesmo modo, os professores. Deste modo, o entretenimento, a refeição, os corredores, a biblioteca, os espaços exteriores são lugares de ensino-aprendizagem e todas as pessoas que habitam estes espaços são agentes dessa dinâmica ampla e englobante. Muitas vezes parece que tudo o que é exterior à sala serve apenas para descansar ou entreter, aliviar do fardo que é o trabalho de ensinar e aprender. Sem lirismos romantizados, temos de admitir como legítimos estes sentimentos. Coisa diferente é que eles sejam a norma ou a única coisa que se experimenta. Aí, há que parar e questionar. E nunca a Escola como entidade abstrata, mas sempre as pessoas que a protagonizam como experiência. Descasar estas geografias e estes protagonistas fragmenta a Escola como lugar a que se tem de aderir por pertença afetiva, de sentido, e não somente por obrigação legal ou profissional. E empobrece o projeto escolar, que se quer amplo e dinâmico.

De fora para dentro (da Escola)

Citamos frequentemente, como lugar-comum, aquele provérbio que diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. E vivemos frequentemente nos seus antípodas. A esquizofrenia higiénica e securitária de imunizar a escola a tudo o que lhe é exterior parece patológica. Não nego a necessidade de segurança e proteção. Coisa diferente é que o espaço escolar seja uma ilha, ciosa da sua especialidade, encerrada num saber monolítico e acabado, impermeável a qualquer contributo da comunidade local. Às vezes até das famílias. Começo por aqui. Mesmo sem a formalidade associativa, ao invés de convocar os encarregados de educação por questões estritamente dos seus filhos, frequentemente ligadas à (in)disciplina, que bom seria que pudessem ser convocados a partir dos contributos dos seus saberes, competências, ofícios. Depois, uma comunidade inteira está repleta de agentes formadores, desde logo de cidadania, que perdemos tanto tempo a quadricular dentro de power points, como se fosse desenhável no mais elaborado dos slides. Dos serviços ao comércio, das empresas ao poder político, do setor social (atenção à aprendizagem intergeracional) aos artistas e agentes culturais, tantas são as possibilidades a reclamar criatividade. Haja rasgo para desconstruir programas e ir além das aprendizagens consideradas essenciais. Não ignoro que há legislação apertada. Mas também sei que os decretos não mudam as práticas e que uma revolução consistente começa sempre da base, para ser, demore o que demorar, legitimada no tempo pelo topo. Ou refeita e ajustado. Em qualquer dos casos, é sempre um acrescento e um contributo de mudança. Creio que devemos isso ao futuro. Mas não se faz com cartazes na rua e tempos de antena panfletários.

Fora da escola

Em ambientes religiosos - no caso, católico, o mais comum e o que melhor domino – não é incomum a referência ao espaço sagrado. Por norma, encerra-se no templo, estende-se ao adro e termina no confinamento com a estrada circundante. Sempre me pergunto se esta não é também sagrada, mais que não seja porque permite esta maravilha da circulação comunicativa e do encontro pelas razões mais variadas. Mutatis mutandis, a escola tem este hábito de se encerrar, fazendo de si a empresa da educação. Creio que isto empobrece o empreendimento. A título de exemplo, e sem pretensões de absolutização ou exaustividade. Penso na relação da matemática com os bancos, os orçamentos das empresas, a gestão da vida familiar. Na química e nos produtos de limpeza, os fitofármacos, a produção do vinho. Na física e na construção, na arquitetura e na engenharia civil. No português e na biblioteca, nos ateliers de escrita, na organização de debates, no sentir o pulsar na língua nos ajuntamentos de pessoas, em cafés, praças ou lares. No inglês e na relação entre avós e netos, na ponte entre migrantes, no acolhimento destes. Na história e na cultura como realidades incarnadas num chão concreto e não num exercício meramente livresco. Na filosofia e no exercício político de construção da cidade, oferecendo laboratórios de ideias e contributos sérios para essa construção.

Penso que a escola deve ter um programa cultural regular, expondo os alunos à arte, levando-os ao cinema e ao teatro, a museus e a galerias, a concertos… Importa motivar os recursos docentes para tal e refazer horários, em função do ritmo de vida atual. O elenco seria infinito e infinitos serão os modos de o apresentar. Reclama-se, apenas, criatividade discernida, fundamentada e com alcance de horizonte. Tudo isto (e o mais que possa ser pensado) pode ser desenhado em propostas de tempos fortes de experiências (semanas de…/dias de…) ou atividades sistemáticas (periodicidade mensal/quinzenal) e não em fogachos ocasionais, que são tantas vezes simples modos de entreter e tentar granjear a simpatia dos alunos, para tentar contrabalançar e legitimar a possibilidade de lhes infligir verdadeiros massacres.