Pra quem busca pensar fora da caixa, Eric Voegelin (1901-1985) pode ser um prato cheio. Na contramão do mainstream marxista que aos poucos tomou posse do academicismo pós II Guerra, o filósofo austríaco nascido na Alemanha precisou criar sua própria divisão didática da história e até mesmo sua própria terminologia para expressar seu pensamento.
Difícil de ser enquadrado em alguma escola teórica ou mesmo em alguma disciplina, Voegelin propôs não um materialismo moralmente perverso nas origens e desenvolvimento da civilização ocidental, mas, em suma, uma espécie de descompasso entre razão e sentimento no processo civilizatório, o que teria nos afastado de uma suposta ordem cosmológica e da simbologia dos nossos mitos ancestrais a ponto não só de perdermos de vista o sentido de nossa própria história, mas de o substituirmos por narrativas deturpadas e anacrônicas que, segundo ele, gestaram os grandes totalitarismos do séc. XX: o nacional-trabalhismo alemão e o socialismo stalinismo.
Como em Max Weber, a erudição com que Voegelin expõe sua concepção histórica constitui uma fonte primária e profunda de conhecimento, mas justo essa originalidade sem par, acaba deixando-a à beira de uma sorte particular de gnosticismo. (curiosamente, ele mesmo imputava como "gnoses" muitas das correntes filosóficas que combatia). Isso se refletiu também em sua cronologia, quase atemporal.
Para Nietzsche e Santo Agostinho, por exemplo, por mais distintas que tenham sido suas perspectivas, o período em que Sócrates e Platão floresceram teria sido um ponto de ruptura na cultura clássica; para Voegelin, porém, aquele mesmo séc. IV a. C. não teria sido senão o apogeu e o canto do cisne da Grécia Antiga. Até então a ideia de ‘verdade‘ coincidia com a da ordem social vigente. Só aí é que teria surgido a noção de uma verdade divina superior e acessível à consciência individual, ainda que oposta à ordem social.
A principal função da ordem cosmológica é diminuir a ansiedade existencial do homem ao dar à sua alma, pela evocação mágica da comunidade, a garantia de ter um lugar significativo em um cosmos bem-ordenado. Quando o encantamento mágico perde a sua força, as inquietações primordiais são novamente liberadas; o mundo circundante torna-se uma vastidão desordenada, cheia de perigos desconhecidos, pressionando a alma humana; e o espírito que é exposto a essa experiência de desordem pode romper-se com a tensão1.
Os oito volumes de História das Ideias Políticas são compilações dos manuscritos que Voegelin produziu entre 1939 e 1954, finalmente reunidos pelo editor para publicação por volta de 1986, e podem ter servido como ensaios ou prolegômenos de sua obra maior, Ordem e História (Editora É Realizações, 2015), mas talvez justamente por isso é que encontramos ali seu pensamento em uma versão mais amena e acessível, embora mais bruta, sem os complexos transes de sua teoria mais acabada.
Embora não tenha dito isso expressamente, ali já está delineada sua ideia de que a conduta humana na consecução do equilíbrio entre o transcendental e o imanente desempenha um papel ontológico, ou que a importância de uma anamnese é mais decisiva que uma ciência puramente sensorial, que para ele nunca passará de uma utopia.
Um atestado a mais de sua originalidade é que, malgrado em seus tempos de aprendizagem ainda em Viena Voegelin tenha sido colega assíduo de Alfred Schütz e Friedrich Hayek os quais, respectivamente, feriram de morte os esquemas pseudocientíficos de Freud e Marx-Engels, para ele a fenomenologia e os aspectos socioeconômicos não eram senão adendos ou derivados da cosmogonia inspirada pelos mitos humanos; esta sim, uma espécie de invariável determinante no desenvolvimento de todas as civilizações. Parece que, em grego arcaico e outras línguas pregressas, a expressão "cosmos" significava algo como ordem, ou talvez desígnio. Voegelin não precisou deste dado etimológico para embasar sua filosofia da história, da religiosidade ou da consciência, mas ela mesma o pressupõe e talvez seja de suas premissas a mais fundamental.
Voegelin migrou para os EUA depois de ser demitido e perseguido após o Anschluss2 que anexou a Áustria à Alemanha em 1938. Mas não embarcou no ingrato e oportunista ôba-ôba que fez a fama novidadeira dos integrantes da Escola de Frankfurt e de tantos outros que na ocasião também se haviam exilado na América do Norte. Seu pensamento foi muito além do mero ódio de si mesmos difundido sob a película filosófico-poética do inconformismo de ocasião sociodesconstrutivista. Voegelin preferiu aceitar o desafio de ser fiel a seu pensamento, à experiência real de sua vida, ainda que lhe custasse clamar no deserto. Pode, sim, ter sido uma tentativa solitária de compreender e explicar a desordem do seu tempo, mas uma tentativa verbalizada em conteúdo, inspiração e originalidade de proporções colossais.
Notas
1 Voegelin, Eric. Helenismo, Roma e Cristianismo primitivo (História das Ideias Políticas - Vol. 1). Editora: É realizações, 2012 [1950].
2 Anexação da Áustria pela Alemanha em março de 1938, considerado o primeiro ato de expansão territorial nazista.