Naquele instante mágico em que tiramos o livro da prateleira da livraria, da biblioteca ou da estante lá de casa, ora porque o título nos seduziu, ora porque revisitamos uma memória preciosa, ora porque ele chamou por nós de algum modo, nós, leitores, começamos, de imediato a criar imagens e portanto, a ilustrá-lo!
Quando mergulhamos nas suas águas azuis, nessa tinta que o escritor à antiga derramou num qualquer papel, então, caríssimos, passamos à delícia de imaginar tudo ao pormenor, a cores, com cheiros, volumos, risos ou lágrimas, texturas, prazeres, dor e suspiros e até gargalhadas...
Porquê?
É que o livro é um hipertexto. É um objecto que nos leva para várias dimensões em simultâneo, para caminhos bifurcados, como nos lembra Borges, para memórias ancestrais e sonhos inconfessáveis. O livro é um Arquê e um Telos. Viajamos com ele para a frente e para trás; para o recôndito e para a fantasia e podemos criar um mundo só nosso a partir de muitos que nos são oferecidos pelo escritor, num só livro!
De facto, o texto narrativo existe tendo em vista a acção humana, que é profundamente social e aberta. É somente através da relação com os outros que podemos chegar a nós próprios, tomando consciência do que somos.
Uma consciência que atravessa diacronias e sincronias, que é recuperada através da história, isto é, da interpretação das obras, dos textos onde se manifesta o acto de existir. É a narratividade própria da experiência temporal do existir que o texto configura. A narrativa torna-se assim, uma condição da experiência prática, pois o próprio campo da práxis humana é sempre narrativamente pré-figurado, quer dizer, está sempre articulado por meio de signos, regras, costumes, valores que permitem que as pessoas se entendam ou divirjam na constituição da sua identidade. Será, pois, extremamente benéfico e propulsor de crescimento o facto nos “apropriarmos” do texto no sentido de revisitar o seu mundo, de nos autoquestionarmos e consciencializarmos o nosso lugar no mundo, as nossas fragilidades, as nossas potencialidades, enfim, enfrentar o palco dos conflitos internos.
Como consequência, o leitor, com a ciência e a arte interpretandi poderá melhor optar, relacionar e comparar-avaliando, diferentes realidades; valorizar umas em detrimento de outras, reconstituindo a sua identidade. Torna-se interessante e até pertinente reconhecermos que no nosso agir diário utilizamos “fórmulas literárias” extraídas da tragédia, do romance, dos contos de fadas ou mesmo dos policiais, ex: “Sinto-me uma personagem de tragédia grega!”; “Não sou nenhum herói!”; “Pareces uma Gata Borralheira”; “Precisava agora aqui de um Sherlock Holmes!”; “Esta é uma história com final feliz”…
Trata-se apenas de alguns de muitos exemplos que na realidade da acção humana se utilizam como lugares comuns, como representação simbólica de uma situação determinada, o que quer dizer que a matéria prima da literatura é o mundo real e que este “informa” aquela arte de conteúdos preciosos, de tesouros a descobrir pelo sujeito que os lê e interpreta, descodificando estruturas narrativas que muito têm que ver com as nossas acções e opções.
No fundo, somos seres feitos de linguagem, fazemos escolhas,
até com os pronomes (possessivos; demonstrativos; indefinidos) e
com o modo dos verbos (conjuntivo; imperativo), e com os
adjectivos e advérbios que utilizamos.
Todos os dias cruzamos a sintaxe do discurso com a sintaxe da vida. Todos os dias ilustramos situações com provérbios e todos os dias sonhamos com herois e heroínas que nos levam a ser mais e mais humanos.
Ao lermos ou relermos histórias de vida diferentes da nossa, ainda que animadas por personagens, manifestam-se, em nós, leitores, interrogações, juízos de valor e comparações e perguntas em que o advérbio de comparação surge: "Ele faz como eu?" surgem. Então, em última instância, é a nossa maneira de ver a vida que está em causa. Por isso e como sublinha Ricoeur (1991)
a narração nunca é eticamente neutra, mostra-se como o primeiro laboratório do julgamento moral.
Trata-se de uma feliz imagem ricoeuriana, que nos permite perceber que o racional e o sensível se sobrepôem neste processo: o objectivo subjectiviza-se e o subjectivo objectiviza-se, na e pela linguagem. Deste modo, a literatura afigura-se, por excelência, como palco laboratorial para experiências de pensamento onde variações imaginativas proliferam. São essas experiências de pensamento, suscitadas pela ficção, com todas as implicações éticas, que contribuem para o exame de si mesmo no quotidiano.
Estética e ética tornam-se indissociáveis na arte de narrar, que é uma arte que corresponde a uma troca de experiências.
Todos nós lemos, fazemos leituras desde que nos levantamos até que nos deitamos e contamos essas mesmas leituras em forma de histórias mais ou menos curtas, com mais ou menos peripécias, com mais ou menos dilemas ou contradições e é por isso que Saramago nos diz: “um livro é acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro – mais do que a história que lhe será narrada – a pessoa invisível, mas omnipresente do seu autor…”. No fundo, Saramago aponta, aqui, para a problemática da identificação possível do leitor com o autor, (de um eu com uma pessoa tu, de carne e osso, que respira, sofre e deseja, invisível mas omnipresente, um ser humano que exprime a sua condição), para a possibilidade de ele próprio se tornar co-autor da obra que está a ler e por conseguinte, seu ilustrador imediato!