Há em várias coisas do mundo a presença de seus mistérios. Os mistérios fazem parte da construção social onde contemplam enigmas que alimentam nossas expectativas de vida e na vida. Para tanto, o oculto sempre foi e será a ponte para as investigações. Além disso, o desconhecido atiça o nosso imaginário. E o imaginário é o maior provocador da comunicação. Por sua vez, a comunicação é a maior facilitadora de mobilização. Néstor García Canclini diz que a sociedade se mobiliza pelo imaginário. A mobilização alimenta as culturas populares. O modo como as culturas populares se mobilizam mostram sua dinâmica.
A cultura, como afirma Marilena Chauí, é tudo que é estar ausente. Os símbolos, os rituais, e toda centelha do sagrado. Certamente, tudo que envolve a espontaneidade, a ludicidade, as festas, as orações, os costumes e a forma de ver e estar no mundo. Há de se considerar que a cultura popular carrega em seu contexto a ambivalência que configura um problema na questão de formular um conceito estável para tal. Pois o popular não é estático, nem imutável, hoje o que é popular pode não ser amanhã.
O popular traduz a dinâmica da cultura, pois é contraditório e subversivo. Nele mora o fabuloso imaginário. O popular é provocador. “Nada é popular por si só. O que foi ontem não é mais hoje, ou vice-versa. Não é uma coisa única, mas muitas: um conglomerado indigesto", Gramsci chegou a dizer em Observações sobre o Folclore (1986)1 Esse é o ponto, a observação.
Criemos então o “observódromo”! Para analisar as culturas populares quando no que se refere ao seu agir mediante à gestão vigente, é necessário muita observação. É providencial as observações para quaisquer atividades que estejam ligadas às culturas populares. Porque as culturas populares se mobilizam a partir de estratégias singulares que desdobram e desmontam alguns padrões norteadores. O modo como as culturas populares se mobilizam podem ajudar a oxigenar as metodologias. São novos imaginários para novas metodologias.
A conectividade com o universo e seus mistérios faz da cultura uma potência singular. Potência esta, que está sempre em prática. Daí a grande perturbação da gestão cultural que é criar condições de acesso, de logística, de estrutura e de capital. Ou seja, o patrimônio não se resume ao palpável mas, ao intangível. Mas, qual é o segredo da cultura? Talvez seja esta dificuldade, a incompreensão do ausente. Como a gestão cultural vai ter um desempenho eficaz em suas atividades que vão desde apresentações, programas, projetos e leis?
Então é inevitável conquistar metodologias que proporcionem as constantes reconfigurações existentes nas culturas populares. Pois o desenlace está na compreensão das oscilações dos eventos cíclicos culturais, no aspecto histórico, econômico, geográfico e político do cotidiano. Tudo isso vai oxigenar as metodologias. Vejamos o exemplo do Festival Chama Violeta que ocorre no município da Ingazeira no alto sertão do Pajeú em Pernambuco, especificamente na comunidade rural de Minadouro sob o mote - No Meu Terreiro Tem Arte! O festival oferece oficinas, apresentações, feira de artesanato, teatro, cinema, brincadeiras, entre outras manifestações de vários grupos de vários lugares. São políticas culturais com sensibilidade que mobilizam grupos e pessoas com o propósito de levar vivências artísticas ao sertão de Pernambuco.
É o caso também do Centro de Criação Galpão das Artes, situado em Limoeiro, Pernambuco, que há mais de vinte anos contempla atividades de artes e cultura para região com apoio de muito esforço do produtor cultural Fábio André que “regasta”, toda arrecadação financeira e projetos para mostrar a maestria da cultura para sua cidade. “Regastar” foi o verbo que criei para compreender o esforço dos produtores culturais em levar teatro, oficinas e projetos para sua cidade. Eles fazem milagres para oferecer o melhor escondendo o lado incógnito da relação entre os financiamentos e o modo como é gasto em detrimento da cultura.
Há também o Festival Canavial na Zona da Mata Norte no município de Aliança, Pernambuco no sítio Chã de Cambará, onde O Maracatu Rural Estrela de Ouro, fundado desde 1966 traz na história influências africanas, indígenas, europeias nas danças de roda, ciranda, cavalo-marinho e no maracatu rural. O festival canavial nasceu para legitimar o imaginário da região, munido de riquezas entre a história econômica do Brasil evidenciado pelos ex-escravos que mostravam nas brincadeiras as manifestações de seus sonhos. Afirma o professor Severino Vicente da Silva:
Nas terras da Zona da Mata Norte se fundiam tradições diversas: nos entrudos, apareciam os “cambindas”, a cambinda, homens que saíam vestidos de mulheres, sem alterar a sua masculinidade; os autos de Natal, as brincadeiras de Mateus, os costumes indígenas, etc. Com fantasias simples, foram se vestindo de índios ou caboclos, muitos tomavam caminhos para o encontro com outros caboclos como eles. Eram temidos por suas lanças, seus chapéus afunilados e pelo barulho que faziam com os chocalhos pendurados em surrões, nas suas costas. Esses caboclos, esses índios mestiços, surgiam em quase todos os engenhos. Os moradores, os meeiros, os trabalhadores de condição, criavam novas maneiras de expressar a sua vida, os seus sonhos. Assim foram se formando tribos diversas, ocorria a recriação das antigas tribos, adotando novos procedimentos, refazendo antigas histórias. Em cada engenho, formavam-se grupos que iam à direção de povoados e de pequenas cidades à época do carnaval.
Esse ano de 2024 o Festival Canavial organizado pelo produtor cultural Afonso Oliveira que incentiva, protege e valoriza a cultura pernambucana traz como tema para programação do seminário O Futuro dos Ciclos Culturais Pernambucanos, além de várias atrações. São ações como essas que fortalecem o refinamento dos seres humanos.
Todas atividades existentes na cultura popular que envolvem as políticas públicas culturais e que estão pautadas na gestão, despertam o medo e o fascínio aos gestores. Medo pela incerteza e pela ambivalência características típicas das culturas populares, e fascínio pela espontaneidade, essa magia que só o imaginário popular reproduz. Porque trabalhar com gestão cultural para que haja desempenho eficaz é preciso muita investigação, capacidade de filosofar, de refletir não só na logística, mas nas possíveis contradições que aparecem no antes, durante e no depois de cada projeto realizado. Ou seja, tem que ter uma visão fenomenológica, para entender o fluxo e a memória de cada manifestação. São ajustes para questões que irão exigir sensibilidade e razão, de hábitos verticalizados.
Digamos que os gestores devem ficar atentos às leis que regulamentam os direitos culturais das pessoas que devem estar acima dos direitos das empresas. Devem garantir o acesso à cultura, pois a forma como as culturas acessam os conteúdos, a capacidade da procura por esses acessos e o aproveitamento do bem cultural, devem ser pautas das gestões. Os gestores devem também superar hábitos acadêmicos que impedem de pensar e intervir no campo da cultura. Tudo isso são desafios dos gestores que como diz o professor Gustavo Remidi , “Quais os limites da liberdade de expressão, no campo da esfera pública popular?”
Para tanto, pensar o popular é pensar numa nova construção social. Isso tem levado a Comissão Nacional de Folclore a pensar em sua reestruturação juntamente com as Comissões Estaduais. Criada para apoiar pesquisas sobre folclore em 1947 com apoio da UNESCO por Renato Almeida.
O Folclore é uma atividade científica e uma atividade humana, uma e outra têm de ser realizadas com inteligência e com amor. Trabalho de campo, de laboratório, de gabinete, de biblioteca, para a investigação, o registro, o cotejo, a exegese. Trabalho cultural e social, com que procuramos aprender a lição imensa da sabedoria do povo.
(Almeida, 1971, p. 12)
Não podemos deixar de lado esses estudiosos que forneceram muitos materiais sobre o folclore ou cultura popular. O nosso problema consiste em não compreender as memórias. Na cultura popular a memória é fonte privilegiada na compreensão da dinâmica e da refuncionalização. Os transculturadores ajudaram na dimensão do campo dos estudos culturais. Ou seja, a transculturação, que é o processo gradual da aculturação foi o termo encontrado por Fernando Ortiz para compreender alterações culturais de um determinado grupo. Talvez o segredo da cultura seja a capacidade de mobilização entre sua dinâmica e sua memória evidenciada pela tradição.
Assim, para que servem as Comissões Estaduais de Folclore? Para guardar o segredo da cultura em forma de registros, publicações, pesquisas, estudos. Faço parte da organização da Comissão Pernambucana de Folclore e Culturas Populares - CPFCP, onde tento exalar as riquezas do tesouro chamado cultura. E, como o moteto, que em várias vozes canta o sacro, anunciando a formosura do sagrado com o popular, a cultura traz e faz o refinamento dos seres humanos.