Quem, hoje em dia, no Brasil, vive sem WhatsApp? Família, amigos, consultas médicas, entregadores, trabalho. Tudo passa por ele. As novas tecnologias chegaram para ficar e reorganizam nossas vidas e formas de pensar. Já pensamos a vida e nossas rotinas a partir dos apps. Abrir e manter contas em banco nunca foi tão fácil. Cada mercado em que se vá, um app diferente para pegar as promoções. O mesmo ocorre com as farmácias, lanchonetes, restaurantes, barbeiros e cabeleireiros. Uma vida ultraconectada.

Mas além das facilidades, também trabalhamos mais e parece que ninguém percebeu. Ou será que ninguém mais se importa? Ou pior: será que não temos escolha? Um WhatsApp na palma da mão é um constante convite ao trabalho. Antes era o e-mail, é verdade, mas não era tão instantâneo, tão simplificado. Ninguém nunca cobrou uma resposta imediata de e-mail como cobra de um “zap”, ainda mais se você mantiver seus tracinhos azuis...

Grupos de trabalho, demandas (sempre) urgentes que chegam até mesmo aos domingos. Cada evento, um novo grupo. Como fazer parte de uma empresa e não ter WhatsApp? É possível? Ou é arriscar não receber informações vitais para o trabalho e, então, arriscar o próprio emprego?

Karl Marx1 — sim, ele mesmo — tem um conceito que pode nos ajudar a pensar sobre o WhatsApp e nossas novas relações de trabalho hiperconectadas: mais-valia.

A mais-valia — ou mais-valor, em algumas traduções — é a diferença entre o que é pago ao trabalhador como salário e o valor produzido pelo trabalho. Ou seja, refere-se às horas de trabalho que não são remuneradas. Uma das formas de extração da mais-valia é o aumento da jornada de trabalho sem aumento proporcional no salário. E não é isso que o WhatsApp faz?

Tudo bem, nós já sabemos — ou deveríamos saber — que no capitalismo não existe salário justo, pois assim não haveria lucro. Mas não estamos percebendo que o WhatsApp nos faz trabalhar mais? É uma condição um tanto alienante — e alienação é outro conceito de Marx — pensar que o WhatsApp apenas facilita e otimiza nosso trabalho e comunicação.

Eu sou professor. Dou aula em escolas particulares. Se antes minha coordenadora precisava esperar meu dia na escola para me passar as demandas, ou ligar quando uma demanda fosse muito urgente — e tudo que hoje consideramos muito urgente, antes não valia uma ligação de telefone fixo — hoje em dia está na palma da mão e na ponta do dedo. Somos facilmente acionados e demandados.

O que essa facilidade encobre é que, o simples ato de direcionar meu pensamento para a escola, para o trabalho, é trabalho. Quando minha coordenadora me manda uma mensagem de WhatsApp “Já lançou a nota dos meninos?” e eu respondo, estou trabalhando. E quantas mensagens não recebemos assim fora de nosso horário oficial de trabalho? Aliás, existe horário oficial de trabalho?

O WhatsApp nos coloca em disponibilidade permanente. Para tudo. Você pode ignorar a mensagem por algumas horas, mas será cobrado se continuar assim. “Coloquei no grupo, você não viu?” E assim vamos trabalhando em horas que seriam de lazer, na praia, no restaurante, no trânsito. Reuniões online nas férias! E não paramos de trabalhar.

Em uma das escolas onde trabalho usamos WhatsApp, e-mail corporativo e Microsoft Teams. Precisei instalar todos esses aplicativos em meu aparelho celular pessoal, para “facilitar meu trabalho”. A saúde da minha bateria — além da minha própria — é consumida pelo trabalho. Celular esse, repito, particular, pago com meu salário, e que agora é usado para gerar mais trabalho. Sequestrado pelo trabalho no sistema capitalista.

E o WhatsApp é apenas mais um agente de sequestro. Esse iconezinho verde com um telefonezinho, tão simpático, quem diria? Marx é assertivo quando afirma que a jornada de trabalho do trabalhador é sua própria vida: “Na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho”.

E nisso, o WhatsApp passa de agente de sequestro a coveiro.

Notas

1 Marx, Karl. O capital – livro 1: crítica da economia política: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2015.