Até alguns anos atrás, eu era o que se costuma chamar de cristão praticante. Como tal, eu era um leitor assíduo da Bíblia. Durante as minhas leituras, um fato me intrigava bastante: por que a Bíblia falava tão pouco sobre o Diabo?

Segundo a doutrina cristã, o maior inimigo da humanidade, aquele que conduziu os seres humanos ao pecado original, é Satanás, o Diabo. Ele usa todo o sistema de coisas que nos cerca, repleto de tentações que visam nos afastar do Criador. Sendo um personagem tão relevante para a teologia cristã, por que não encontramos, em todo o Antigo Testamento, referências a esse personagem? Corrigindo, há referência a Satanás no livro de Jó, que possui um estilo e narrativa que destoam completamente dos demais livros do Antigo Testamento.

Por questão de tempo, ou da falta dele, e da necessidade de estabelecer prioridades, deixei essa curiosidade de lado, não me aprofundando em minhas pesquisas, retornando ao tema apenas há cerca de dois anos.

Ao lermos a Bíblia, notamos uma narrativa bastante harmônica, apesar de algumas contradições. Podemos observar que o Deus do Antigo Testamento, que se apresenta sob o nome de Iavé, possui características típicas dos deuses das religiões antigas. Iavé é todo-poderoso, sendo a soberania a sua característica distintiva. Era um deus nacional que, em troca da devoção de seu povo escolhido, provia proteção contra seus inimigos e fartura em suas colheitas. A provação por parte de Deus de sua nação era resultado de sua obediência e devoção, não sendo permitida a adoração de deidades estrangeiras.

Alguns fatores acerca da teologia judaica contida no Pentateuco, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, e de outros livros das Escrituras Hebraicas são a ausência da influência divina na construção de uma moralidade e a ausência de adversários para Iavé. As deidades estrangeiras eram consideradas apenas ídolos inanimados, não eram deuses de fato. Apenas Iavé era um deus de verdade. Não existia a imagem de um inimigo como Satanás.

Vale destacar que, sem a existência de Satanás, não faria sentido a doutrina da imortalidade da alma e da perspectiva de vida eterna futura, seja num lugar paradisíaco, seja num lugar de tormento eterno. A ação de Satanás, na teologia judaico-cristã, seria desviar essas almas de sua relação com o Deus todo-poderoso, condenando-as ao tormento eterno em um inferno, que seria o seu domínio. Ora, qual seria, então, a origem dessas crenças que hoje permeiam as principais religiões monoteístas do mundo - o cristianismo, judaísmo e islamismo - se não existiam originalmente em suas teologias?

Entre os anos de 1700 a.C. a 1000 a.C., onde hoje encontra-se o Irã, o profeta Zoroastro fundou uma das mais influentes religiões da história, o zoroastrismo, que forneceu uma nova visão religiosa, influenciando inúmeras outras religiões ao longo da história, entre elas o judaísmo, em seu estado posterior, e o cristianismo.

Uma das principais inovações introduzidas por Zoroastro foi a elevação de Ahura Mazda à posição de única divindade não criada. Ahura Mazda, como criador do cosmos, era também a personificação de toda a bondade. Por meio de seu espírito benevolente, chamado de Spenta Mainyu, os demais seres vêm à existência.

Ahura Mazda traz ainda à existência os sete Amesha Spenta, dotados de profundas qualidades morais e espirituais. O zoroastrismo pratica uma espécie de monoteísmo primordial, onde existe uma divindade que prevalece sobre as demais, embora não seja única. Nota-se ainda que estas divindades, inclusive as menores, refletem características típicas dos seres humanos, algumas consideradas boas e outras ruins.

É bem verdade que podemos notar uma grande contradição que certamente seria percebida pelos humanos daqueles dias também. Se Ahura Mazda era o único deus todo-poderoso e a própria encarnação da bondade, como conciliar a existência de um confronto infindável entre a ordem e o caos no mundo? Como poderia Ahura Mazda ser a origem de tal antagonismo?

Para resolver essa dicotomia, Zoroastro encontrou uma solução que não era exatamente original, mas foi aplicada de uma forma bem peculiar. O mal, o caos, passa a ser associado à figura de Angra Mainyu, o espírito maligno. Assim, pode-se dizer que a criação boa e perfeita de Ahura Mazda é atacada pelo invejoso e maligno Angra Mainyu. Este espírito do mal, portanto, passa a ser aquele que introduz tudo o que há de perverso na criação. Desde os maus pensamentos e palavras perversas até odores ruins, resumindo, tudo que há de pútrido, ruim ou degradado é obra de Angra Mainyu.

Com a dicotomia criada pelo antagonismo entre Ahura Mazda e Angra Mainyu, uma nova característica é adotada pelas religiões que surgem posteriormente: o enfrentamento de duas divindades em oposição, uma que ama e deseja recompensar sua criação humana e outra que deseja desvirtuá-la, levando-a a perder o favor da divindade do bem. Essa visão é adotada pelo cristianismo, pelo judaísmo e pelo islamismo, as maiores religiões do mundo na atualidade.

No entanto, a contribuição de Zoroastro foi muito além da elaboração de duas divindades opostas. Zoroastro desenvolveu todo um sistema escatológico que também influenciou e influencia religiões atuais.