É bastante comum ouvirmos dos leitores de hoje, quando perguntados sobre o início de seus hábitos de leitura, responderem que o prazer por acompanhar narrativas começou com as histórias de fantasia, o primeiro contato com os livros para muitas crianças e adolescentes. Com o tempo, no entanto, e a descoberta por novos estilos e autores, muitos de nós nos afastamos das histórias épicas de aventuras fantásticas, para nos dedicarmos a romances, novelas e contos que se passam, em sua grande maioria, no mundo que conhecemos.
Mas, para muitos, a leitura é também o resgate da nostalgia pelo prazer de ler histórias com um toque de magia e, nesse contexto, o realismo fantástico, um gênero literário que mescla elementos da vida comum com eventos ou aspectos surreais, pode ser uma ótima alternativa para continuar percebendo a magia em momentos cotidianos.
O realismo fantástico tem sua origem no século XX, inicialmente ligado à pintura alemã. Na literatura, a origem do termo é associada especialmente à literatura latino-americana, em que autores exploraram os limites entre o real e o fantástico. Esse estilo frequentemente cria mundos nos quais o sobrenatural é tratado com naturalidade pelos personagens e o leitor percebe que as leis da lógica são desafiadas sem que isso seja visto como anômalo.
Autores como Jorge Luis Borges (Argentina), Gabriel García Márquez (Colômbia) e Julio Cortázar (Argentina) são frequentemente citados como expoentes do realismo fantástico. Um exemplo clássico desse estilo é o romance Cem Anos de Solidão, de García Márquez, no qual o autor funde eventos extraordinários com a vida comum, criando uma realidade onde o fantástico e o mundano se entrelaçam sem qualquer estranheza pelos personagens.
O romance é uma das obras mais emblemáticas do realismo fantástico e uma das mais importantes da literatura latino-americana. Publicado em 1967, a história narra a saga da família Buendía ao longo de várias gerações, na aldeia fictícia de Macondo, que serve como cenário para os eventos extraordinários.
Macondo é palco de eventos impressionantes e misteriosos, como uma tempestade de chuva que dura quatro anos e outros elementos sobrenaturais, todos aceitos de forma natural por seus habitantes. A obra também aborda temas políticos, sociais e econômicos da América Latina, como o imperialismo, as guerras civis e as dificuldades de transformação nas sociedades latino-americanas. O autor utiliza o fantástico para refletir sobre essas questões, conferindo à narrativa um caráter alegórico.
No cinema, o realismo fantástico também se manifesta por meio da fusão do real com o surreal, sendo uma ferramenta poderosa para explorar questões existenciais, psicológicas e sociais. Diretores como Guillermo del Toro e J.A. Bayona são conhecidos por utilizar o realismo fantástico para criar realidades alternativas e explorar dimensões psicológicas, muitas vezes fazendo com que o impossível se torne natural.
Um exemplo disso é o filme O Labirinto do Fauno (2006), do diretor mexicano Guillermo del Toro, que mistura a fantasia com a dura realidade da Guerra Civil Espanhola, criando uma narrativa repleta de simbolismo.
Ambientado na Espanha pós-Guerra Civil, em 1944, a história segue Ofélia, uma menina de 11 anos, que se muda com sua mãe, Carmen, para uma aldeia onde o padrasto, o cruel capitão Vidal, está liderando uma batalha contra os guerrilheiros republicanos.
Ofélia encontra um labirinto misterioso, onde conhece um fauno, que lhe revela que ela é a reencarnação de uma princesa de um reino subterrâneo. O fauno oferece a Ofélia três tarefas para provar sua realeza e retornar ao seu verdadeiro mundo. Ao mesmo tempo, a menina deve lidar com os horrores da guerra e com o autoritarismo do padrasto.
O filme mistura elementos de fantasia e realidade, explorando temas como inocência, resistência, e a luta entre o bem e o mal. Enquanto Ofélia enfrenta suas tarefas para o retorno ao mundo de fantasia, a violência do mundo real se torna cada vez mais ameaçadora. O final do filme é ambíguo, misturando tragédia e esperança, deixando a interpretação aberta sobre o destino de Ofélia e a natureza de sua jornada.
Já em Sete Minutos Depois da Meia-Noite (2016), filme dirigido pelo cineasta espanhol J.A. Bayona e baseado no livro de Patrick Ness, Conor, um garoto que enfrenta o câncer de sua mãe e o bullying na escola, é visitado por um monstro na forma de uma árvore gigante, que lhe conta histórias em troca da sua própria. O monstro funciona não só como uma figura fantástica, mas também como uma metáfora para os sentimentos reprimidos de Conor, ajudando-o a lidar com a dor, a perda e a aceitação da realidade.
O realismo fantástico no cinema e na literatura provoca uma suspensão da incredulidade: o público aceita a presença de elementos extraordinários sem que isso precise ser justificado de maneira lógica. Isso cria uma atmosfera única de mistério e magia, permitindo uma exploração profunda da complexidade da experiência humana ao combinar elementos aparentemente contraditórios.
Ao explorar realidades paralelas ou possibilidades infinitas, as obras ganham uma dimensão emocional e filosófica que vai além da simples narrativa. Essa fusão de opostos – a realidade concreta com o encantamento do irreal – oferece uma perspectiva mais ampla sobre o ser humano, suas limitações, seus desejos, seus medos e suas esperanças, convidando os leitores e espectadores a questionar a própria natureza da realidade e da percepção.