Desafiar os limites convencionais da física, investe no ser humano a capacidade de redefinir e apurar os sentidos da sua imaginação mais anamórfica. De outro modo, seria improvável observar estruturas de ferro a voar, ou a cargas massivas com pesos superlativos a flutuar no mar.

Progressivamente e, mais próximo da tecnologia apurada através do paradigma contemporâneo, observa-se a afirmação de uma aparente transformação do tempo e espaço que passam a ampliar a nossa experiência física através do universo digital que a ciência e a arte, converteram numa realidade transhumanizada, imersiva e complexa do ponto de vista social e filosófico. Tratar-se-á de uma transformação? Um devir digital, radicado na convergência entre duas extensões mentais do ser humano que, são alvos de uma simbiose?

Para me debruçar sobre estes aspetos transcendentais do ponto de vista mais conceptual e tecnológico, deslocar-me-ei entre os paradigmas relativos à obra da artista portuguesa Rita Castanheira, gravitando em suma em redor das exposições “Arrepio na Espinha” (2024) e “Feminino de Ninguém” (2024) que estiveram patentes de fevereiro a março de 2024 no Porto, mais precisamente na galeria O Estúdio e no Espaço Mira, respetivamente.

As suas instalações e obras, plasmam imagens geradas ou modificadas através do computador ou outros softwares e realidades virtuais, que por sua vez, se aproximam de um espaço povoado por seres híbridos que tanto podem ser ou não reais, materiais ou imateriais. A retórica levantada sobre a ambiguidade destes biótipos virtuais, manifestam uma inércia muito presente na obra da artista atualmente a residir no Porto.

Em "Feminino de Ninguém", somos convidados a entrar na intersecção da escultura, do vídeo, da arquitectura, do design e do tricot, na forma de instalação, envolvido por sua vez, num ambiente do caráter habitacional, recordando-nos da construção afectiva do espaço, do casulo e das condições mínimas de sobrevivência da arte. O puro estado de produção artística.

O paradigma quase antropológico desta relação da artista com a obra no contexto do seu habitáculo, acentua diversas camadas conceptuais que se difundem na relação periférica do choque entre dois regimes de sensorialidade, marcados pela natureza física e digital. Em comum partilham o mesmo espaço mental e uma cor: o roxo.

A composição da instalação marcada por um circuito multicanal, converge no desktop da artista para assumir o lugar mais centralizado da instalação, sobre o qual são expostos três smartphones e um computador, em que individualmente exibem três obras separadas [Chew it until you blow it (2018), crybby__ (2019), The risks of non genuine software are easy to miss (2019) Thatssosad (2019), Retz compilation (2022 - 2024), No face detected (2019), Mem.exchange (2020), Portal 1 (2019)]. À sua volta gravitam mais cinco obras em vídeo (títulos) que acentuam o virtuosismo presente na relação bipolarizada da instalação, fazendo-se acompanhar em suma, por fragmentos em tecido que deslocam e sublimam as sucessivas distâncias, entre disciplinas artísticas.

Em torno dos populares jogos de computador, verifica-se o lado sagaz da iconografia digital, afinada pela pluralidade dos corpos, simultaneamente empenhados em diferentes funções de autopercepção. Verifica-se por via da reflexão da artista um ajuste pessoal, assumido pelo autorretrato pragmático, o encontro com uma dimensão metafísica da inteligência artificial que discute o dualismo cartesiano. Os fenómenos mentais não são físicos ou a mente e o corpo são distintos e separáveis?

Em ”chew it until you blow it” (2018) observamos a artista a transformar-se gradualmente numa pastilha elástica enquanto a vai mastigando, admitindo a metamorfose entre dois corpos, que em potência estão mortos.

Num plano semelhante a obra (The risks of non genuine software are easy to miss, 2019) permite-nos observar um novo autorretrato em processo de conclusão, no qual observamos a artista a desenhar a sua forma numa realidade virtual que embora se possa observar não existe efetivamente. A provocação latente, subtrai o empirismo a uma dúvida constante, nutrida pela curiosidade que estas dicotomias mentais promovem.

O que se sucede com a obra da Rita é que arrasta o corpo, juntamente com todos os elementos abstratos, para dentro de um outro elemento difuso e visceral: o universo algorítmico. Desembaraça os corpos da sua inércia física e, simultaneamente da materialidade da nossa presença. A música, as múltiplas transformações, a repetição, desencarnam os corpos, de tal modo que somos, na qualidade de público, conquistados imersivamente pela relação intrínseca com as obras. De certo modo parece existir uma conceito de meta-realidade que termina e outra que começa.

A iconografia pop e as probabilidades digitais estão nas telas, preenchendo-as. Indissociável à análise do semiótico, plasmam-se os vestígios das peças em tecido, que estabelecem pontos de contacto entre o trabalho em vídeo e o manual, mais ancestral e, como tal difuso no esclarecimento da morfologia híbrida da instalação. A sua presença soma-se à ideia de uma aparente resistência radicada na dúvida e eventualmente na desconfiança sobre inevitabilidades digitais, que orbitam a ideia da reconstrução de uma memória coletiva baseada em valores transhumanizados.

A indústria 4.0, o VR e, sobretudo a experiência imersiva que amplia a relação visceral do corpo com um meta-universo paralelo ao que conhecemos, acomoda-nos para a constatação de um ciclo de evolução em transformação, radicado na elementaridade da dúvida, enquanto gradiente para a imaginação e a prevenção de ocorrências imprevisíveis. Não se trata da revelação de uma novidade apurada através da tecnologia por via do pictural, mas da hermenêutica subserviente da arte, debruçada sobre as idiossincrasias da contemporaneidade, radicadas nas probabilidades da eficácia estética.

De acordo com as palavras de Filipa Valente, autora do texto que acompanhou a exposição “Arrepio na Espinha”, a tela pressupõe dentro dos moldes da Rita Castanheira, um elemento ambíguo, que contesta a fronteira conceptual entre o que é real e virtual. O vocabulário vernacular do universo digital é somado à narrativa artística, que assume a escolha contingente e lhe transmite a informação necessária a partir de zoom out e Go to desktop. Acentuam-se as diferenças, assumindo o binómio articulado à ideia de “ser criatura-objeto”.

Teletummie (xx) , dá título à performance duracional realizada pela artista, que consiste na sua divagação pelo espaço enquanto exibe um monitor sustentado na barriga que, por sua vez transmite um ambiente do videojogo The Sims. A narrativa artística dá lugar a uma simbiose que deixa transparecer uma fissura que a eficácia da arte promove. Não consiste em transmitir mensagens, fornecer modelos ou decifrar as representações, mas em recortar o espaço e o tempo singular para discutir o dualismo entre: dentro ou fora, proximidade ou distância, frente ou no meio de.

Os contornos mais característicos da exposição “Arrepio na Espinha”, formam-se à volta da consolidação pictórica da sua obra, em convergência referência e conceptual com o universo digital. A abstração das formas que se tornam visíveis através do gesto pictural, assim como, através da fiscalidade do tecido, imprimem uma oposição em relação ao objeto explorado na exposição “Feminino de Ninguém”. A artista assume uma linguagem experimental e recente, sobre a qual reflete e ensaia novas formas de pensar os aspetos mais materiais e imateriais da arte, sem nunca obliterar o campo mental que ambos partilham.

Habita ainda na sua obra, uma provocação visual que imita a mimeis objetiva do ambiente de trabalho do computador, que faz parte do imaginário para várias obras da sua autoria. A sobreposição das janelas abertas, imprimem um rasto de informação móvel de adição ou subtração, dependendo da escolha do seu utilizador. A utilidade desse processo mecânico, funciona como uma memória operada ao nível da tecnologia, que permite organizar e hierarquizar informação. Em termos pictóricos admite a assemblage de diferentes conteúdos que se agrupam, produzindo uma composição construtivista reduzida ao essencial.

Imprime a ideia de uma eficácia estética que merece ser esclarecida. Com efeito, parece haver no trabalho da artista um distanciamento à contemplação estática da beleza, contemplação essa que ocultaria os fundamentos sociais inerentes ao imaginário artístico, assim como, a consciência crítica da realidade e dos meios de agir dentro desses espaços.

A eficácia constitui uma rutura relativamente ao paradigma representacional para dar lugar aos conceitos sensíveis apresentados num lugar dedicado à arte, exprimindo uma relação de causa e efeito entre a intenção artística e uma certa configuração da vida e memória colectiva.

Reconhecer estes signos significa comprometer-nos numa certa leitura do planeta que habitamos a partir do olhar crítico, jocoso e provocativo da Rita. Trata-se de um modelo pedagógico sintomático à sua eficácia estética, absorvente de uma iconografia de elementos que operam exaustivamente no circuito das nossas influências.

Deste modo o seu trabalho é encarado como um espelho ampliador no qual os espectadores são levados a ver, sobre as formas de ficção, os comportamentos humanos, as suas virtudes e os seus vícios. A sua obra procura lógicas de situações que deviam ser reconhecidas para indivíduos se orientarem no mundo e modelos de pensamento e de ação que deviam ser imitados ou evitados.

The risks of non genuine software are easy to miss (2019) 17’15’'