To find one's way anywhere, one has to find one's door, just like Alice, you see. You take too much of one thing and you get too big, then you take too much of another and you get too small. You've got to find your own doorway into things…

(Paula Rego)

[ Para encontrar o próprio caminho em qualquer lugar, é preciso encontrar a própria porta, assim como Alice, entende? Você toma muito de uma coisa e fica muito grande, depois toma muito de outra e fica muito pequeno. Você tem que encontrar sua própria porta de entrada nas coisas...]

Pintora da matéria de que são feitos os sonhos, Paula Rego é inspirada pelos surrealistas e vai abrindo portas ao espanto!

Em Paula Rego as histórias vão emergindo à medida que a obra avança, como se fossem histórias contadas no presente do indicativo. A sua obra, como refere Ruth Rosengarten (2005) corporiza o impulso narrativo que informa o modo como vivemos as nossas vidas: o modo como se entrelaçam os sonhos, desejos e passados que constituem as histórias que contamos a nós próprios; mutatis mutandis, vamos ao encontro de Lewis Carroll que através da sua obra faz redescobrir e depois interpretar os conteúdos menmónicos do inconsciente do sujeito Alice.

Quer em Carroll, quer em Paula Rego o corpo encontra-se enredado em sistemas de significação psíquica: o corpo é ao mesmo tempo um gerador de significados e um local (espaço tópico, de transformação) onde o significado se consuma em acto, seja de poder, de luta, de ilusão…

Nas obras de Paula Rego encontramos um sujeito que habita a cultura e compete com o conteúdo da sua lei e nessas obras a relação do sujeito com a autoridade transforma-se numa complexa mistura e interdependência entre obediência e resistência.

Há um quadro de Paula Rego, The Dance, de 1988, que nos arrebata sempre que nos cruzamos com ele. Comprado pela Tate de Londres um ano depois de ter sido pintado, é onde permanece, espaçoso e altivo, tanto como humilde e verdadeiro.

E não é só o seu tamanho que arrebata e impressiona, há muitas grandes telas de Paula Rego, e são quase todas fortes, mas esta tem o condão de ser uma espécie de súmula do seu trabalho.

Este quadro, que é como se fosse um sonho de Paula Rego, com com todas as possibilidades em aberto, foi começado em Portugal, mas terminado em Londres. Precisou de 10 desenhos preparatórios, doados à Tate de Londres quando esta comprou o quadro. Numa entrevista, Paula Rego disse que “este era o quadro que ligaria tudo” e que deveria “estar pendurado sobre tudo o resto”.

Se por um lado, Paula Rego afirma: "Os meus quadros estão sempre a mudar”; por outro lado, o discurso literário de Carroll é uma metamorfose transformativa, em que as palavras se tornam sujeito e objecto de sentido e significação. Ainda outro ponto em comum aos dois artistas é que ambos são seduzidos pelo quotidiano, pela sabedoria prática (ricoeuriana) do dia a dia, pois temos Alice a transformar a hora do chá e as personagens que frequentavam a sua casa em companheiros de aventuras num país de sonho e temos Paula Rego a pintar As Criadas; A Família ou ainda A Dança.

Também o disforme e o animal são tópicos de ambos os autores e revelam uma consciência do mundo psíquico para além das fronteiras do consciente.

A propósito de As Meninas de Paula Rego, diz-nos Agustina Bessa-Luís no seu livro com o mesmo nome, que “O mundo artista é um prolongamento da infância, dos seus medos e dos seus gritos penetrantes como o que os pavões soltam num parque deserto…”. Podemos dizer que Meninas de todas as idades e feitios mostram-se na obra de Paula Rego e Alice é uma delas.

A artista escreve nas suas telas o Coelho de Alice numa Guerra, pronúncia as Rimas de Alice com a boca de As Meninas, a sua caligrafia penetra nos sonhos como em O sonho de José, relembrando a sua riqueza psicológica que faz com que Alice regresse a si mesma enquanto Outra. Ela descreve vidas interiores como Carroll ao desnudar o habitat das suas personagens.

Agustina afiram que Paula Rego pinta “para dar uma linguagem a tudo o que não tem palavras”. Nós diríamos que Carroll escreve para nos dar metarealidades, que são metamorfoses. Essas são os grandes acontecimentos em Paula Rego e Carroll.

Na obra No Jardim de 1986, Paula Rego exprime a intercessão manifestada no lindo Jardim de Alice, entre o humano e o animal, este último que fala e protege; uma história primordial que nos conduz às fábulas e ao “Era uma vez o tempo em que os animais falavam…” que nos remete para uma valência fantástica da linguagem e da sua gramática da fantasia: o poder de tudo fazer! O poder de tudo criar! E a arte como nos relembra Agustina “ é um jogo de linguagem”; a vida é uma adivinha que se propõe aos sentidos e por isso tudo o que escrevemos e pintamos são adivinhas.

Ao cruzarmos Lewis Carroll com Paula Rego, encontramos um conjunto de figuras, piruetas, situações de pernas para o ar…que nos fazem lembrar a metáfora da condição humana: O circo. Os símbolos balançam-se no trapézio das palavras e imagens desfazem a tabuada do tempo com um Chapeleiro maluco, mas as diversas Alices que encontramos, verdadeiras e falsas (temática aprofundada em Tim Burton) lá se vão equilibrando tendo por rede o sonho e as suas almofadas feitas de fios de linguagem estremecidos pelo sopro das personagens, ora animais ora humanos que se domesticam ou se libertam conforme o aplauso do nosso olhar.