À beira-Tejo ainda “À beira-Tejo. A ponte, as pontes!”, 17/6/2023… com a imaginação subindo o rio do tempo onde Heráclito nos fez reconhecer a nossa mudança e a da história… E a História é feita de vida e de morte em episódios que as mãos tão bem exprimem.
Rodin surpreendeu-nos com a diversidade da sua representação de que me limito a lembrar algumas: das enlaçadas n’ A Catedral/Arca da Aliança (1908-25) à Mão do Túmulo (1914-15), à de Deus (1898-1925) e à do Diabo segurando a Mulher (1903-1925)…
No grupo de Laocoonte e dos seus filhos Antífantes e Timbreu estrangulados por duas serpentes marinhas (27 a. C.- 68 d. C.), castigo de Apolo (segundo Plínio, o Velho, Naturalis Historia, vol. 36), da autoria de Agesandro, Atenodoro e Polidoro, a versão inicialmente recomposta após o seu encontro em 1506 elevava três mãos em desesperado apelo (v. gravura exposta no Museu D. João VI, no Rio de Janeiro), composição alterada meio século depois quando o braço direito da figura central foi descoberto dando razão a Miguel ngelo: enclavinhada na serpente, simbolizava a luta paroxística pela existência destruída em minutos…
Que contraste com as desaparecidas, apenas imaginadas hoje, na Vitória de Samotrácia (200 a. C.), sugerindo uma adejante celebração da vida! Ou das expressivas do esvaimento da vida do Cristo Velado (1750), de Giuseppe Sanmartino, na Capela de Sansevero.
Manifestando-se nas mais diversas posições, visíveis, entrevistas ou imaginadas pelo seu desaparecimento também, elas sucedem-se nos 113m do friso do Altar de Pérgamo, inspirado, crê-se, na Teogonia de Hesíodo, organizado genealogicamente, com os descendentes de Urano, os Titãs e os Deuses olímpicos, num combate entre a ordem e o caos em que a História se gera…
Emoldurando o beijo e as cabaças amadas, recordo as envolventes de Eros e Psique (1787-1793), de Antonio Canova. Ou convulsionadas no mármore de L’Umanità Contro Il Male (1908).
A arte vitoriana ‘domesticou-as’ de modos diversos, com destaque para a que se poisa sobre a correspondência recebida, um organizador de papeis na secretária, as que empunham flores em postais, catálogos de moda ou esculpidas, alfinetes de peito, etc.. Hoje, as mãos da sorte, as de Fátima e outras banalizaram-se no nosso quotidiano…
Sir Jacob Epstein (1880-1959) dedica-lhes algumas esculturas e Harriet Goodhue Hosmer tornou famosas as Mãos Entrelaçadas de Robert e Elizabeth Barrett Browning (1853).
Salvador Dali oferece-no-las em diversas representações revisitando famosa anterioridade: as Reaching Hands ou A Mão de Deus tocando o Homem evocam a pintura da “Criação de Adão” (1511), de Miguel ngelo, na Capela Sistina.
E, se a moderna era da suspeita impôs a “Mão Invisível” (metáfora economicista de Adam Smith no seu A Riqueza das Nações) e, depois, a “Oculta”, transferindo-a para o poder exercido nas sombras e, por fim, para o domínio conspiracionista do Governo Oculto do Mundo, a verdade é que com ela contrasta a mão sem corpo a que a Família Adams deu protagonismo, uma mão singular cujo nome a reifica: a Coisa (The Thing) entrelaçando comédia e humor negro…
Mas ensaiemos um grand tour à medida deste texto e marcado pelas sombras da morte… a tumulária.
Tumulária
Ocorre-me o alto-relevo da fonte da autoria de Gustav Vigeland no Vigeland Park (Oslo, Noruega), cuja ambiguidade das mãos do esqueleto entre o par lhe vale dupla designação: “Até que a morte nos separe” (Till Death Do Us Part) e “A Morte Separando um Homem e uma Mulher” (Death Parting Man and Woman) (1916). Amor e morte, união e separação…
Na etrusca Necropoli dell'Osteria (Necrópole do Pub, séc. VII-IV a. C), entre as Tumbas do Sol e da Lua, além de outras, destaca-se, no meio da câmara central, as Mãos de Prata, mostrando palmas abertas com traços de ouro nos dedos.
Os Anjos intemporais estendem-nos a mãos nas mais diversas posições. Desde as colocadas no peito como as de um no cemitério de Varsóvia às elevadas e abertas em aceitação irrestrita do anjo do cemitério de Certosa de Bolonha e às d’ O Anjo (2017), de Benjamin Matthew Victor, descaídas, uma vazia e outra deixando escorregar o véu dentro de si, lembrando a fugacidade do tempo e da vida. E até os fantasmas as estendem para a vida, como as da figura vitoriana que Michael Locascio nos apresenta a sair de outra dimensão num espelho com moldura antiga. Esse impressionante trabalho foi feito pelo artista. Os do Cemitério de Sta. Ana em Trieste, como, p. ex., o de metal aplicado sobre uma parece, que eleva as mãos para os céus, em gesto espiritualizado.
Alguns túmulos famosos apresentam mãos esculpidas ou representadas em gesto codificando mensagens. O do casal romano apertando as mãos em fidelidade descoberto em Frejus (França). O da mão segurando uma grinalda em Éfesos (Turquia). As do casal de esqueletos com c. 1500 anos encontrado num antigo palácio em Modena (Itália), suspenso num entreolhar apaixonado ainda.
Num deles, no cemitério de Bellefontaine de St. Louis (Missouri), uma mão parece sair da pedra agarrando o livro da vida para no-lo lembrar…
Algumas composições tumulares atraem irresistivelmente para as mãos o nosso olhar e, por vezes, desafiam ou orientam-nos a leitura. No túmulo de Júlio II, na Basílica de S. Pedro, no Vaticano, Miguel ngelo destaca em Moisés uma mão desafiando a interpretação. No de Napoleão Bonaparte, no Hôtel des Invalides (Paris, França), “O Triunfo da Revolução” evidencia uma das mãos de Napoleão. No de Eva Perón, no Cemitério da Recoleta (Buenos Aires, Argentina), "La Descamisada" (Eva Perón) destaca as mãos. No de Rafael, no Pantheon (Roma, Itália), as suas mãos são pormenorizada e realisticamente esculpidas. No de Lorenzo de Medici (Florença, Itália), uma série de esculturas parecem comunicar connosco através das mãos, orientando a leitura: p. ex., um anjo aponta para a inscrição do túmulo, enquanto outra figura aponta para um livro aberto.
Outros túmulos parecem celebrar o amor e a união eterna. No de Michael e Maria Howard, no Cemitério Kensico (Nova York), as esculturas do par sentado lado a lado com as mãos entrelaçadas homenageia o companheirismo do casal. No de Sir Henry Tate e sua esposa na Abadia de Westminster (Londres), uma cruz é empunhada pelas mãos entrelaçadas. O de Mary Elliot Wilson no cemitério de Highgate (Londres), apresenta-a reclinada entrelaçando as mãos do marido. No de William e Lillie Wall, no cemitério de Mountain View, em Oregon, ergue-se uma estátua de um casal idoso com as mãos entrelaçadas.
Os túmulos de mãos dadas (em holandês: graf met de handjes), no antigo cemitério de Roermond (Holanda), acolhem o casal Jacob van Gorcum (protestante) e Josephina van Aefferden (católica), do séc. XIX, que, por serem de religiões diferentes, tiveram de ser colocados separados pelo muro que distingue os dois lados do cemitério e unidos por duas mãos esculpidas sobre ele.
Lembremos, ainda, os jazigos em que o par se projecta na História de mãos dadas, muitas vezes, depois da tragédia amorosa. O de Abelardo e Heloísa, no Cemitério do Père-Lachaise (Paris, França). O de Shah Jahan e Mumtaz Mahal: o Taj Mahal, em Agra, na Índia, em cujo interior o par é representado de mãos dadas. O de Diego Rivera e Frida Kahlo no Museu Casa Azul, na Cidade do México, também de mãos dadas. Também o de Richard Wagner e Cosima Wagner no jardim da Villa Wahnfried, em Bayreuth, Alemanha.
Inesquecível de sensualidade, a estátua de uma mulher que parece fundir-se com uma rocha, de costas, escondendo as mãos, no cemitério de Sta. Ana em Trieste.
Informadas de coquetterie, as do jazente de Inês de Castro no seu túmulo juntam-se com motivos que serão mais tarde cultivados nas cenas galantes de François Boucher, Antoine Watteau e Jean-Honoré Fragonard: a esquerda voltada para fora a segurar uma luva e a direita a acariciar o longo colar, como se estivesse a juntar-se ao seu amado D. Pedro, a entrar no baile da vida e/ou da morte…
Concluo este passeio entre a tumulária com a evocação do belíssimo jazigo “Os Amantes de Teruel” esculpido por Juan de Ávalos (1956) na Igreja de S. Pedro de Teruel, homenageando os lendários amores trágicos de Juan (Juan Martínez de Marsilla) e Isabel (de Segura) [1217]: as mãos do par suspendem-se numa ânsia de enlace não completado simbolizando o amor inconcretizado… Versão espanhola do Romeu e Julieta que Tirso de Molina e outros celebraram, é, actualmente, o centro do turismo local e de um Festival.
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.(Antero de Quental - 1886)