Recuerdo (creo) sus manos afiladas de trenzado. Recuerdo cerca de esas manos un mate, con las armas de la Banda Oriental; recuerdo en la ventana de la casa una estera amarilla, con un vago paisaje lacustre. Recuerdo claramente su voz; la voz pausada, resentida y nasal del orillero antiguo, sin los silbidos italianos de ahora (…).
(Jorge Luis Borges)
Em Funes, el Memorioso, Borges conta-nos a história do magnífico e inimitável Ireneo Funes, um jovem que, ao sofrer uma queda que o deixou imobilizado, foi ao mesmo tempo presenteado com uma memória miraculosa. Funes era capaz de se lembrar de cada minuto do dia, “(…) el presente era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memorias más antiguas y más triviales.” Aos 19 anos, a sua vida transformou-se num processo de rememoração infinito, passou a habitar as memórias do visível e, num certo sentido, passou a viver de trás para frente. “Pensó que en la hora de la muerte no habría acabado aún de clasificar todos los recuerdos de la niñez”. A memória é um tema que sempre interessou ao escritor argentino – esta capacidade que temos de reviver momentos que já cá não estão, mas que, ao mesmo tempo, podem impedir de vermos o que temos no preciso instante diante de nós. É um paradoxo, que a arte, nas suas diversas modalidades e aceções, tem tentado resolver ao longo dos séculos. Regis Debray afirma que a criação das imagens é fruto do desejo humano de permanecer: sabendo que nossa memória não é infinita, como a de Funes, as imagens existem para nos ajudar a reviver o passado, a torná-lo presente e visitável.
Manu Menezes (em exposição na Associação 289) é uma jovem artista que faz da memória o fio condutor da sua obra. Esse fio não é apenas metafórico, mas é a matéria a que recorre para construir objetos, frutos de suas vivências, das memórias transmitidas por gerações de mulheres, que, antes dela, fizeram do bordado uma ocupação, muitas vezes uma obrigação – uma função feminina de entre as muitas que a mulher foi obrigada a ocupar ao longo dos anos. Enquanto Ulisses navegava em mares bravios e desbravava o desconhecido, Penélope esperava e tecia. A tessitura da vida está também nas mãos de três mulheres, as Moiras ou Parcas, que decidem quando esticar ou cortar o fio que nos sustenta neste mundo. Tecer, bordar e coser são ações associadas ao mundo feminino.
Mesmo na arte, muitas são as mulheres que usaram os fios como ferramenta e matéria para construir discursos plásticos. Também alguns homens, como o artista brasileiro Leonilson, recorreram ao bordado para dar vida ao gesto artístico. No seu caso, bordava palavras e construía novos sentidos, desviando os tecidos e as rendas do lugar mais doméstico e expondo com eles, e através deles, as suas mais íntimas (e por isso universais) feridas. É esta tessitura desvirtuada, feita em croché, que respira na falsa delicadeza das peças de Manu Menezes – objetos desviados da sua função doméstica e convocados como discurso artístico. Cadeiras, molduras, mesas de canto. Lugares de memória e também espaço de ausências. O croché é feito de pontos que se compõem de cheios e de vazios e este vazio é acentuado, pela artista, quando deixa a peça incompleta, com a linha à espera, de algo ou de alguém que componha o retrato, que preencha os vazios, que reconduza o fio ao princípio, onde tudo começou. Uma lata de biscoitos que a avó guardava no armário, que todas as avós guardavam nos armários que habitam as casas dos avós, é recoberta com um naperon, ou uma teia, que uma aranha laboriosa teceu à volta. Um sinal do tempo, uma marca da resistência dos objetos, mesmo os mais inúteis, como essa lata de biscoitos, que se fixam na nossa memória e fazem parte de nós.
Retrato de Família, O vazio que não vi chegar, O espelho das gerações passadas são nomes das obras que, interligadas entre si, compõem um cenário íntimo e acolhedor, mas profundamente nostálgico. Seria a nostalgia, palavra tão pesada quanto bela, possível numa artista tão jovem? É tão possível que uma das obras se chama Talvez lembrar seja pesado demais. Para combater esse peso, Manu Menezes atua com leveza – as peças de croché, ora penduradas, ora encaixadas noutras peças, são ligeiras e aconchegantes. Funcionam como um catalisador de lembranças, contam-nos histórias – e, com as suas histórias insinuadas, a artista pretende que o espectador entre na obra, convocando memórias próprias. É inegável a presença do elemento dialógico que nos remete, invariavelmente, para uma amplificação do conceito criado por Nicolas Bourriaud da estética relacional: a arte só funciona quando habitada e vivenciada.
Entro no universo de Manu Menezes como entrava, nas tardes quentes de Verão, na sala da casa dos avós que só era aberta às visitas. Resguardada por cortinas espessas, portas fechadas e silêncio. Aquela sala que, em criança, ia espreitar enquanto todos dormiam a sesta. Tanto calor, a casa parecia vazia, pé ante pé, andava por ali, sem fazer barulho. E tudo parecia diferente, novo. Outra casa na mesma casa, desabitada àquela hora do dia. Não me comovo com facilidade, mas a obra de Manu Menezes toca-me no lugar mais sensível – o das ausências. Aquele lugar que a só arte é capaz, muitas vezes, de preencher.