Não passamos imunes ao contato com arte. A arte em si e a relação com ela nos dizem muito sobre nós mesmos, como indivíduos e como comunidade. Sempre extraímos elementos que acrescentarão algo as nossas vidas, mesmo que não tenhamos consciência disso.
Ao pensar na minha biografia e nas conexões que estabeleci com a Arte ao longo da vida, percebi que houve alguns momentos impactantes que me transformaram. No entanto, o encontro fortuito de um objeto no quartinho dos fundos de casa me fez identificar um momento fundador que formou o meu olhar, minha sensibilidade e minha relação com a Arte.
Esse momento se deu na minha infância, com a convivência familiar com um artista plástico mineiro. Roberto de Almeida foi companheiro de uma tia materna por poucos anos e com ela teve um filho, mas desapareceu quando meu primo ainda era um bebê. Nunca mais deu notícias. Nossa convivência foi curta e, devido a minha idade, tenho pouquíssimas recordações dele. Dessa primeira relação direta com um artista, restou uma única foto de família e uma tela na sala de visitas. O quadro é o registro vivo de sua passagem por nossa vida. Sei pouco sobre a biografia do artista e minhas pesquisas não foram muitos profícuas, pois há homônimos.
Encontrei alguns quadros de sua autoria em leilões, mas sem a biografia anexa. Sei que Roberto era de Belo Horizonte e realizava muitas exposições em galerias. Vivia de sua Arte e era um artista bem-sucedido. Quando pintou o quadro que ficou em minha casa, o artista tinha por volta de 30 anos. Notícias que chegavam à família diziam que continuava expondo pelo país e que, em um determinado momento, teria virado monge e falecido. Não consegui confirmar esses fatos.
Passei toda a minha infância e adolescência observando o quadro de Roberto de Almeida na sala de minha casa. Retratava um cenário familiar, uma leitura da paisagem vista da minha varanda em Nova Lima, pequena cidade de Minas Gerais. Passei anos vendo essa paisagem diariamente, mas demorei para perceber que o quadro era uma representação dela.
A pintura é figurativa, mas não realista. Tem traços e cores fortes distorcidas, impressionistas, que não me levaram à associação imediata da tela com a imagem vista da varanda. Apesar da similaridade com o cenário real que eu vislumbrava todos os dias, a pintura de Roberto Almeida é uma interpretação do seu olhar que ganhou um caráter meio mágico.
A paisagem de Nova Lima retratada por Roberto de Almeida e suas pinceladas verdes em movimento me fazem lembrar as paisagens de Arles e as pinceladas amarelas de Van Gohg. Ambos pintaram ao ar livre com ênfase nas cores em movimento. Certamente, Roberto foi influenciado pela arte impressionista e pelo gênio holandês.
Sua obra apresenta elementos congeniais típicos da Arte Moderna, pois mesmo expressando características da arte europeia, incorporou elementos inconfundíveis e representativos do Brasil em sua paisagem: a vegetação e a construção típica do interior mineiro. Reconhecemos o nosso país, pois identificamos o que nos é peculiar e particular. O quadro foi pintado em 1970, mas Roberto de Almeida fez parte de uma Geração que entrou nos anos 80 valorizando o aspecto nacional, a pintura e a escultura, o olhar otimista nas artes.
Essa tela contribuiu para treinar o meu olhar e, sobretudo, para trazer um sentimento de prazer diante de uma obra. Esse momento foi um marco na minha relação com a Arte pois, a partir dele, tornou-se imprescindível objetos de arte ao meu redor. Todos os ambientes domésticos e profissionais que tive dali em diante estariam incompletos se não houvesse obras de arte. As inúmeras casas em que morei só se tornavam acolhedoras e com a minha personalidade após pendurarmos os nossos quadros nas paredes.
A convivência com um artista e a presença de sua obra em minha casa tornaram a Arte um valor e uma necessidade. Sou grata a Roberto de Almeida por isso, apesar de ter passado tão rapidamente por nossas vidas, deixando sofrimento em alguns familiares queridos.
Quando me mudei da casa dos meus pais, o quadro permaneceu lá, até que um dia minha mãe me revelou que o Roberto de Almeida o havia pintado e o deixado de presente para mim. Nesse momento, a obra ganhou um novo significado e a levei para minha casa. Mas mudanças e novas decorações o conduziram ao quartinho dos fundos, assim como minhas lembranças.
Recentemente o reencontrei e com ele, recordações e afetos. Hoje consigo compreender melhor a obra que me foi presenteada por Roberto de Almeida, não apenas do ponto de vista estético. É uma bela obra, merecedora de nova moldura e de espaço nos meus contatos cotidianos com a Arte.
Imagem 1: Quadro de Roberto de Almeida (acrílico sobre tela, ano 1970, dimensões: 60X40). Acervo pessoal de Ana Paula Marchesotti.
As obras de arte são atemporais e nos conduzem a uma ruptura com o presente, nos levando a tempos passados e futuros. Elas nos deixam marcas que às vezes demoramos a perceber, mas que formam nosso olhar, nossa sensibilidade e nossa forma de viver. Não é sem razão que a Humanidade produz e se cerca de Arte desde os tempos das cavernas. É impossível viver sem Arte.