Se há evolução na arte, é porque a arte não pode viver senão criando novos perceptos e afectos (...)
(Gilles Deleuze)1
A cultura digital que hoje se conhece, surge num momento em que a experiência das imagens modificou profundamente a percepção cinematográfica, pela forma como foi retirada da exclusividade das salas de cinema. Rompeu-se uma hierarquia que deixou de explorar exclusivamente a narrativa, a representação, ou o bidimensionalismo canónico, para abrir caminho a uma investigação sobre um conjunto de propriedades desconstruidas, desmaterializadas e liberais, à margem das obrigações técnicas do cinema.
Esta fissura perceptiva, radicada sobre dissemelhados gestos idiossincráticos, parece manifestar- se gradualmente através das sucessivas indagações artísticas, trabalhadas no plano conceptual, estético e, sobretudo na sua fase ainda preambular, (essencialmente empírico) no plano técnico. Ações ordenadas sobre um devir artístico, com ímpeto para transformar as subordinações estéticas e psicofisiológicas da arte, a par de um cruzamento interdisciplinar consolidado pela ciência e tecnologia.
Este Flâneur, parece proceder da invariável necessidade em produzir expansões artísticas apoiadas sobre uma perspetiva simultaneamente desconstruida e transdisciplinar em relação ao paradigma artístico, mas também em relação ao próprio indivíduo. Inevitabilidade sintomática que reside no espírito errático e etnográfico do artista, que perante estas formulações e de modo empírico se torna, segundo Hall Foster, mais do que um produtor de objetos de arte, num manipulador de sinais, investigando e produzindo proposições, (de toda a ordem) sobre uma consciência mais sensível em relação às noções de tempo e espaço.
Perante este transversal cenário de necessária ruptura e união, consequente do pensamento artístico, e ajustado à relação com a imagem em movimento e, mais tarde, time-based-art, (isto é, todas as obras que compreendem uma dimensão temporal, como o filme ou vídeo) o artista procura, ao longo das décadas, promover deambulações no plano mental e físico do espaço, da obra e do espectador, na tentativa de estimular um contato mais íntimo e sensível com as diversas dimensões e sensações da obra, que se encontram em suspenso no local.
Vejamos, face à abertura sobre uma investigação artística focada num conjunto de elementos, desintegrados e liberais, à margem das ortodoxias cinematográficas reunidos sobre prática focada na experiência expandida das imagens, ganha maior significado e aplicabilidade, o encontro com as ressonâncias herdadas do conceito ou corrente teórico-crítica denominada por Desconstrução empreendido pelo filósofo franco-argelino Jaques Derrida. Coadunam-se, no seguimento deste principio, reflexões, questões filosóficas, literárias, políticas e intelectuais que proporcionaram um abalo no pensamento metafísico ocidental, já que este se apoiava, muitas vezes, nas relações binárias para estabelecer uma hierarquia ou supremacia de um termo sobre o outro. Regista a necessidade de "inverter" hierarquias revelando os seus pressupostos, ambiguidades e contradições, tornando possível abordar, destabilizar e, por conseguinte, expandir os seus limites de compreensão.
Na esfera do redimensionamento da cultura digital, a par das sucessivas transformações sobre a política das artes, esta corrente teórico-crítica pode ter provocado uma gradual libertação em relação às formulações técnicas, conceptuais e cinematográficas, privilegiando perspetivas inquietantes do ponto de vista conceptual, relativamente à produção e experiência das imagens. Abstração que se traduz numa subversão sobre as extensões da tradição cinematográfica, impulsionado pela emancipação do espectador, gradualmente mais encorajado a mover-se à volta e em frente do dispositivo de imagens.
Por inerência, o vídeo enquanto consequência do espírito do seu tempo, deixa cair a narrativa ou representação normativa presente nos filmes, para ser o meio que questiona a sua própria estrutura, empregando dessa forma uma observação mais ontológica. Subsequentemente o vídeo torna-se, na sua forma mais simples, num processo duracional, que, associado a uma ativação da experiência de visualização, de contornos próprios, coloca em primeiro plano as condições temporais e espaciais da escultura.
Face aos desafios da comunicabilidade com o espectador, progressivamente somado à posição de interveniente crítico, procura suprimir as distâncias. Desenvolve sobre o rasto dos sinais de um pathos, uma consciência fundamental para a sua emancipação, tornando mais clara a ideia da evolução e intervenção do vídeo no espaço expositivo, com o objetivo de promover novas indagações, no sentido de gerar perspectivas heterodoxas que reflitam sobre a condição transdisciplinar da obra de arte.
Neste processo de redefinição da imagem em movimento, inerente a um profundo exercício filosófico, somam-se dilemas que colocam em perspetiva a relação do espectador com uma um conjunto de elementos e propriedades heterogéneas, simultaneamente empenhados em discutir decisões de ação.
O artista, produtor de sinais coloca em perspetiva a libertação de um espaço que se julgava (erradamente) ser puramente óptico entregando ao olhar um poder absolutamente estranho em que não encontra repouso.
De forma produtiva, espera-se que perante estas relações geradas através de instalações que
estimulam experiências espontâneas com o filme e vídeo, se agucem retóricas sobre o que
significa produzir uma imagem, tendo por base a sua ação desconstrutiva.
O que representa o dispositivo? O que representa a sua ausência em relação a uma tela que
perante esta condição, permanece em branco?
Referências
1 Deleuze, Gilles. (ano). “Lógica da Sensação”. Orfeu Negro, Lisboa. p.18.
Baudrillard, Jean. “A troca simbólica e a Morte”. Edições 70, 1996.
Foster, Hall. The Artist as Ethnographer? University of California Press, 1995.
London, Barbara. Video/ Art: The First Fifty Years. Phaidon Press Ltd, 2020.
Younglood, Gene, et al. Expanded Cinema: Fiftieth Anniversary Edition (Meaning Systems). Fordham
University Press, 2020.
Kant, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Trad: Fernando Costa Mattos. Pensmento humano, 2016.
Wilder, Ken. Michael Fried and Beholding video Art. Proceedings of the European Society for Aesthetics, vol. 3. London: University of the Arts, 2011.