Pois a arte – e afinal não vejo outra definição que englobe todas as demais – é uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo, em materializar de uma ou outra forma suas relações com o tempo e o espaço.
(Nicolas Bourriaud)
Dificilmente resisto à tentação de procurar sentidos nas palavras, para além daqueles que elas contêm. O escritor argentino Julio Cortázar dizia que as palavras eram um mistério que ele gostava de desvendar, de penetrar, para criar novas relações, e revelações, mesmo, e sobretudo, nas palavras banais do quotidiano:
Yo parezco haber nacido para no aceptar las cosas tal como me son dadas.
Angelo Gonçalves é um artista que, como o escritor argentino, não aceita as coisas como lhe são dadas – usa os objetos (palavras) banais do quotidiano e com eles cria a sua arte. Uma arte que está em processo desde que ele começou a explorar, de forma mais densa e consciente, as camadas de significação que se ocultam sob os tetos das palafitas, das casas provisórias, da impermanência do que devia ser permanente e sólido. Mas, ao contrário de diversos artistas contemporâneos, que agem sobre os objetos artísticos anteriores, que habitam, e tomam para si, as artes de outros e atuam sobre elas, num processo a que o Nicolas Borriaud chama de pós-produção, Angelo Gonçalves atua sobre o real, sobre a materialidade dos objetos que são, quase sempre, restos e sobras da sociedade de consumo.
Estanque é uma exposição e uma proposição – estancar é conter o curso dos líquidos, e é também esgotar-se, chegar a um ponto fixo, do qual não se consegue sair. O que não traduz o fluxo irreprimível do artista que apresenta, nessa exposição, 2 pinturas, 2 fotografias e 2 instalações construídas in situ. Nenhuma delas está estanque, pois são dialogantes – entre si mesmas e entre outras exposições do artista. Há, no entanto, um elemento comum: a água que está contida, representada através das palavras e das imagens, insinuada pelos recipientes que compõem os objetos, pelas manchas nas pinturas mas, efetivamente, ausente. A fragilidade das instalações corresponde à fragilidade da escultura fotografada que foi escolhida, pelo próprio artista, como a imagem desta exposição: uma palafita, com seus pilares à mostra, como desnudados pela água que parece rarear.
Há outra fotografia, que acompanha esta imagem, que mostra o manancial seco, com a casa/palafita no meio, perdida entre as margens que se estendem e tomam o lugar outrora ocupado pela água. Em galego, estanque é o nome que se dá a uma barragem, a um tanque artificial. Como aquelas que estancam os rios que deveriam fluir.
Como disse, mais que uma exposição, Angelo Gonçalves apresenta-nos uma proposição que é antagônica à ideia de estancar, de cortar o fluxo, de chegar a um ponto, aparentemente, final. Marcel Broodthaers afirmou que “desde de Duchamp, o artista é o autor de uma definição”. O artista, como Cortázar, define a função dos objetos nas suas criações, afastando-os da sua aparente banalidade e criando novos sentidos que podem estar estagnados num tempo e espaço definidos, mas que continuam o seu percurso para além do momento exato, e estanque, da sua criação.