Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento.
Era o livre e luminoso chamamento.
Da asa dos espaços fugitiva.(Sophia de Mello Breyner e Andresen)
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.(Eugénio de Andrade)
Continuo diante do Tejo, na Belém sonhada pela trajectória da Estrela que na beira-mar veio beber o mito do além oceânico, promovendo a sobreimpressão do profano no sagrado nos portais do Mosteiro… A viagem das e pelas mãos que na arte se multiplicam continua. Estamos na terceira e última jornada.
Instalações
Na sua gestualidade efémera, as mãos oferecem-se como motivo por excelência para instalações artísticas. Já delas falei, mas ainda regresso ao tema.
Existem várias instalações de arte que incorporam a representação de mãos de maneiras criativas e marcantes. Já referi algumas delas em versão gigante no texto anterior, como foi o caso das de Mario Irarrázabal (p. ex., a Mão do Deserto, no deserto do Atacama, no Chile), de Lorenzo Quinn (p. ex., as Mãos que Ajudam, em Veneza) e de Sudarshan Pattnaik (a Árvore de Mãos, em itinerância por praias), entre outras.
E poderíamos lembrar outras ainda. "The Hands of Your Hand", de Bruce Nauman, com uma série de mãos de gesso em tamanho real, em várias posições, criando o efeito de tensão e conexão. A "Hand Hold Water", de Anish Kapoor, com mãos de aço inoxidável em diferentes posições, segurando água, com efeito visual e sonoro. As "Hands On" de Yoko Ono, interativa, com duas mãos em bronze numa parede apelando ao toque. As "Hands", de David Burdeny, com uma série de mãos em close-up, causando estranheza. A "Place des Lices", de Jean-Michel Othoniel, com mãos gigantes de vidro soprado feitas em Veneza, anexadas a postes de luz numa praça, causando um impacto algo mágico. As "1000 Hands", de Chris Burden, com 1000 mãos em bronze numa parede, cada uma com o seu gesto e posição. A "Hand Catching Lead", de Jorge Marin, com uma figura humana gigante a segurar uma esfera em chamas, contrastando fortemente mãos e fogo nessa simbolização da criatividade humana, prometeica.
E a de “Gallos” (2016), estátua do rei Arthur, no castelo de Tintagel (Cornwall), de bronze maciço da autoria do galês Rubin Eynon?
Na pintura
Destacam-se na representação do corpo humano.
No centro da composição Thorn Amidst the Roses (1887), de James Sant, parecem dialogar, brincando umas com as outras e pormenores delas têm sido usados para decoração e ilustração da moda.
Nos (auto-)retratos, atraem e desviam o nosso olhar do rosto que nos observa, como é o caso de Jeanne-Antoinette Poisson, Marquesa de Pompadour (1750), de Francois Boucher (1750), Mademoiselle Barberie de Courteille (1759), de Jean-Baptiste Greuze, ou Auto-retrato com chapéu de palha (1782), de Elisabeth Vigée Le Burn. Às vezes, estendem-se com o mito para além de si, como a de Sappho (1881), de Miguel Carbonell i Selva.
E, nas composições de grupo com paisagem como a do Nascimento de Vénus (1486) ou na Primavera (1482), de Botticelli. constituem pormenor dentre outros, mas que codifica uma informação específica (a modéstia de Vénus ou a fraternidade das Graças…).
Mas a pintura é um mundo imenso em que nos perderíamos…
Na Escultura
Já muito nos ocupou esta manifestação artística, mas não resisto a lembrar as mãos dramaticamente destacadas do O rapto de Proserpine (1621-22), de Gian Lorenzo Bernini, e as de trágica metamorfose de Dafne (Apolo e Dafne, 1622-25), de Gian-Lorenzo Bernini, assim como as já mencionadas emoldurantes e amorosas de Eros e Psique (1793), de Antonio Canova.
Design
E no design?
Também as mãos são motivos sugestivos. Bastaria lembrar as icónicas "Hand Chairs" (década de 1960), de Pedro Friedeberg, ou a "Hand Chair", com o formato de uma mão aberta, de Jie Qiu, ou a sua homónima de Massimo Iosa Ghini, cadeira com a forma de uma mão espalmada com dedos apontados para cima, ou a também com o mesmo nome de Pedro da Costa Felgueiras, com a forma de uma mão direita. Ou as que se oferecem como porta-jóias…
À Porta
Nas albrabas das portas, elas emergem de rendadas mangas sugerindo o toque ou a abertura, às vezes, com um visível anel (simbolizando asilo) ou brincando com uma sugestiva maçã, sinal de mito cristão ou pagão (como a da porta da Can Balaguer ou Cal Marquès del Requer e Can Blanes, sede do Círculo de Bellas Artes), outras, parecendo hesitar nesse limiar, ou mesclando espiritualidades, como a mão de Fátima que acolhe a representação de Om ou o mito religioso e o jogo de sedução numa porta de Montferrand. Quando femininas, são ternamente protectoras...
Em 2019, essa tradição das mãos nas aldrabas justificaram a Exposição "As Mãos nos Batentes das Portas de Tavira" com fotografias de Alice Almeida.
Mas também podem surgir como maçanetas irónicas, fazendo-nos sinais (ok ou outros).
Na rua
Subitamente, ao passearmos por Lisboa, somos surpreendidos na Estrada da Torre por um remake da Mãos em Oração (1508), de Albrecht Dürer, com auriculares em vez do rosário: a reinterpretação de Regg Salgado (Tiago Salgado) ostentada no âmbito do Festival de Arte Urbana de Lisboa – Muro’19.
Cinema
Eppur si muove!
(Galileu Galilei)
No cinema, o motivo de mãos pode ter marcante função simbólica ou narrativa.
Recordemos alguns casos.
"O Homem Vitruviano" em Blade Runner 2049, homenageia o famoso desenho de Leonardo da Vinci, com as mãos do personagem principal em posição semelhante. A Montanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder, apresenta na cena final uma mão sem vida pendurada na maçaneta de uma porta fechada, simbolizando o fim da carreira de um personagem famoso. O Escafandro e a Borboleta (2007) tem uma cena famosa com a mão do protagonista, a única parte de seu corpo que consegue ainda movimentar, a esboçar as letras do alfabeto para comunicar. O Feiticeiro de Oz (1939), na cena da morte da bruxa malvada, mostra a mão desta a surgir debaixo da casa. Carrie, A Estranha (1976), numa cena em que a personagem principal, por telecinese, lança objetos aos seus agressores, tem um close-up que evidencia as suas mãos, sinalizando o seu poder. A trilogia d’O Senhor dos Anéis, (2001-03) apresenta vários close-ups das mãos dos personagens, das quais uma é a de Frodo a oferecer o Anel Único para Gandalf, com as duas mãos a encontrarem-se.
E, se deixarmos voar a imaginação em sucessivas associações, visionaremos o toque de dedos d’A Criação de Adão a metamorfosear-se no análogo entre o do ET e da criança e, por fim, no que, actualmente, vemos acontecer no encontro entre o do humano e o da Inteligência Artificial… todos aproximando e pondo em contacto os diferentes, embora cada um com a sua leitura, pontuando a caminhada do Homem desde o Renascimento até aos nossos dias, do encantamento do mundo ao seu desencantamento (Max Weber, Marcel Gauchet, Eduardo Lourenço)…
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação.
E nunca as minhas mãos ficam vazias.(Sophia de Mello Breyner e Andresen)
1 Agradeço a sugestão do poema de Eugénio de Andrade de que cito estes versos.
2Agradeço à Maria João Coutinho a foto que me enviou (na verdade, várias) a seguir à leitura do meu texto anterior sobre este motivo.