A cidade adormece perto das vinte e três da noite, e desperta perto das cinco da manhã, o silêncio torna-se assombroso, mas também pacífico. São poucos os grilos que se ouvem na cidade, mas são muitos os pirilampos que brilham no campo. A cidade dorme, e o som dorme com ela. Quando a cidade desperta, há sinais, não há um despertador exato, mas há sons que se destacam, buzinadelas, motores a arrancar, persianas que levantam, máquinas de café que se multiplicam e se ligam, cadeiras que arrastam e sapatos e sapatilhas que andam a passo apressado.
A cidade grita, berra, desgasta-se lentamente, mas também o acordar a mantém viva, tal e qual um carro dos anos 70, precisa de movimento, mesmo travado, deve puxado a fundo, a fim de libertar umas quantas partículas tóxicas no ar, caso contrário, fica apenas um monte de lata bem trabalhada e finalizada.
Com a agitação diária, a correria extrema e a movimentação exorbitante, esquecemo-nos de ouvir, passam a ser sons demasiado cómodos aos nossos ouvidos, já nem ouvimos.
O quotidiano vira hábito e sem nos apercebermos, os sons ganham impacto nos nossos dias, esquecemos de apreciar sons, apelidamo-los de ruído.
Ruído esse que se converte em momentos de conhecimento, sons elaborados que perfazem os nossos minutos e se convertem em obras de arte esculpidas em decibéis.
Será possível o som ser arte?
Afinal o que pode e não ser considerado uma obra de arte? Quais os critérios pré-estabelecidos para se entender o que deve ser considerado uma obra de arte?
Integradas na arte contemporânea, as esculturas sonoras são ainda desconhecidas a muitos, mas são verdadeiros pináculos de criação entre a arte, o som e matéria, criando uma certa experiência estética. São na verdade, verdadeiras manifestações artísticas dos museus, obras exteriores ou até interiores, formas interativas de absorver o que é a arte e como ela deve ser sentida, afinal a mesma foi criada com intenção e modifica a nossa atenção sobre a mesma, são peças curiosas e difusoras de vibrações e sentimentos possíveis de captar através da arte.
Talvez seja incomum, talvez ainda seja demasiado novo e recente para ser entendido por todos, mas a verdade é que a arte acompanha os tempos e modifica-se consoante as mentalidades.
Com som, não falamos de música, falamos de integração de sons na arte contemporânea que nos são comuns, outros são só estranhos, habituais, invulgares e curiosos. Afinal a natureza dispõe de mais recursos do que aqueles que efetivamente nós decidimos usar, e curiosamente são verdadeiras obras de arte inexploradas.
Digamos então, que se trata de esculturas, esculturas sonoras, difusoras de som, dignas de apreciação e valorização, mas certamente dignas de serem ouvidas, pela nossa audição, mas também pelo tato, pelo espírito. Sons que definem formas, que ensinam histórias e transmitem momentos. São esculturas, esculpidas pelo silêncio e o mesmo faz o corte, formas malformadas pelo conteúdo outrora comum, mas atualmente desconhecido.
E assim lidamos com a ignorância das gerações que não podem encarar som como arte, exceto se de música se tratar. Lidamos com o conflito da contemporaneidade e da dificuldade de a mesma ser apreciada, entendida e amada.
Mas retratamos o espectro da história, a repetição dos momentos e a afeitação da ideia de que o artista nunca é apreciado no seu tempo. Morrer assim talvez seja inspirador, na ideia que nasceu no tempo errado e desejando que a sua obra seja apreciada um dia, mais tarde, pela quarta ou quinta geração que virá um dia.
Que o som seja modelador da forma, que capte a essência, que desperte a cidade e não deixe dormir qualquer um.
Sonhando que o som será uma obra tão meritória como o captar do som de um grilo, reluzente como um pirilampo, voador como um morcego, que foge a cada barreira sonora. Na verdade, o som cria uma forma, e este pequeno mamífero sente isso.