Convocações

Quando adormecia na ilha de Lia
Meus Deus, eu só vivia a sonhar
Que passava ao largo no barco de Rosa
E queria aquela ilha abordar
Pra dormir com Lia que via que eu ia
Sonhar dentro do barco de Rosa
Rosa que se ria e dizia nem coisa com coisa

Era uma armadilha de Lia com Rosa com Lia
Eu não podia escapar
Girava num barco num lago no centro da ilha
Num moinho do mar
Era estar com Rosa nos braços de Lia
Era Lia com balanço de Rosa
Era tão real, era devaneio
Era meio a meio, meio Rosa, meio Lia
Meio Rosa, meio-dia, meia lua, meio Lia

Meio é uma partilha de Rosa com Lia
Com Rosa eu não podia esperar
Na feira do porto, meu corpo, minh'alma
Meus sonhos vinham negociar
Era poesia nos pratos de Rosa
Era prosa na balança de Lia
Era tão real, era devaneio
Era meio a meio, meio Lia, meio Rosa
Meio lia, meia lua, meio-dia, meio Rosa

Meio na ilha de Lia, de Lia, de Lia
No barco de Rosa, de Rosa, de Rosa
Na ilha de Lia, de Lia, de Lia
No barco de Rosa, de Rosa, de Rosa
Na ilha de Lia
Lia
No barco de Rosa
Rosa
Na ilha de Lia
Lia
No barco de Rosa
Rosa
Na ilha de Lia, Lia, Lia
No barco de Rosa, Rosa, Rosa

(Compositores Lobo / Chico Buarque Letras de Meio-dia meia-lua © Universal Music Mgb Songs, S D R M Fonte: Musixmatch)

Lia Rosa. Lia e Rosa. Lia Rosa. Na ambiguidade da expressão, contempla-se a leitura em pretérito imperfeito verbal (lia) de um objecto metamórfico de pregnante simbólica: a rosa, sinalizando a arte (e os seus programas estéticos), o amor (marcante no imaginário ocidental), a morte (memento que é da efemeridade da vida), a mulher (por ela evocada)…

No regime da canção, o devaneio em que Buarque nos embala constitui movimento de associação e fuga (do latim fugare, perseguir, e fugere, fugir), de imagens do mesmo tema ou de temas afins, em sucessiva, contrapontística e entrelaçada composição. Nele ecoa a linhagem das fugas barrocas (de Dieterich Buxtehude, Johann Pachelbel, Johann Sebastian Bach), duplicadas por Wolfgang Amadeus Mozart, reconduzidas a ciclos completos por compositores como Anton Reicha, Felix Mendelssohn e Dmitri Shostakovich, dentre outros, e que a contemporaneidade tanto tem cultivado: de Béla Bartók, Igor Stravinsky e Dmitri Shostakovich, ao jazz de Alec Templeton às Bachianas Brasileiras de Heitor Villa Lobos, ao tango de Ástor Piazzolla e ao Requiem (1966) de György Ligeti…

Deixo-me embalar pelo ritmo de Buarque, pois, afinal… Eu não podia escapar/ Girava num barco num lago no centro da ilha / Num moinho do mar/ /…// Era tão real, era devaneio…

Lia Rosa. Figuração onírica de um ideal feminino em que se encontram a mulher, o património arqueológico da humanidade e a Dama de Branco que atravessa o imaginário ocidental, refractando-se nas suas letras e artes.

A mulher no quadro doméstico, cotidiano pragmático. A dona de casa, fada do lar, a quem se deve a harmonia familiar, a gestão da vida comum, o legado geracional, os laços de mediação sociológicos (geracionais, culturais, familiares): com a prática (a cozinha, os pratos de Rosa) e a sensatez (a balança de Lia), assegurando a tranquilidade dos seus. O modelo que emerge no Romantismo, capaz de um tranquilizador Amor de Salvação (1864), tão diverso do fatal Amor de Perdição (1861-62), para recorrer a títulos camilianos. Mulher com um papel marcado pelo projecto triádico de regime político divulgado pela cultura alemã de Kinder, Küche, Kirche ("crianças, cozinha, igreja"), norteador da sua actuação na sociedade, sendo esses os elementos que deveriam guiar a vida de uma “boa mulher”. Ou com a tripla face de filha, esposa e mãe iluminada pela luz de um enfoque que a religião queria actualizar a partir da figura de Maria e das Santas dos Flos Sanctorum medievais que a ela e ao modelo crístico aspiravam, origem de um calendário enlutado pelo martírio, a dor, a paixão. Ou…

A mulher na história da humanidade em diáspora, aventura perscrutada por investigação sempre em debate (Genographic Project, com base no ADN da Humanidade, ou o HHMI-BioInteractive, Ancestry.com, ou…) buscando a compreensão da revolução cognitiva na origem dessa história, há cerca de 70 mil anos, e a cartografia da sua viagem. Segundo alguns, encetada em África, continente-Mãe. Através dessa Dama de Branco (The White Lady) rupestre da gruta “Abrigo Maack” do Monte Brandberg, a mais alta montanha da Namíbia, uma representação de diversas figuras humanas e de um Órix. Com mais de 2000 anos, foram descobertas Reinhard Maack em 1918, devem o nome a Henri Breuil (1929) e são atribuídas aos bosquímanos.

A Dama de Branco representada nas Artes e nas Letras. Figuração feminina diversificada. No fantástico popular (lendas) ou erudito (Nathaniel Hawthorne, Walter Scott): das lendas das Damas de Branco que atravessam quase todas as culturas e oscilam entre o aparecimento diáfano, sinal de uma morte próxima ou lembrança da sua, e a versão sangrenta com Maria Stuart e outras em linha de fuga. No cinema, Lady in White (1988), de Frank LaLoggia, protagonizado por Lukas Haas, Len Cariou, Alex Rocco e Katherine Helmond, conjuga e actualiza alguns desses traços num suspense que o tornou de culto. Na ópera, La Dame Blanche (1825), de François-Adrien Boieldieu, vibra com o humor em três atos com libreto de Eugène Scribe combinando episódios de cinco obras de Walter Scott, obtendo um sucesso que influirá em operetas seguintes.

Na tradição estética: desde a angelical e lunar de um poético Noivado do Sepulcro (1850), de Soares de Passos, às pictóricas e impressionistas de Jan Toorop (1886) e às ‘sinfónicas’ de James McNeill Whistler (Symphony in White, No. 1: The White Girl ; Symphony in White, No. 2: The Little White Girl; e Symphony in White, No. 3) que Cesário homenageia no seu “De Tarde”, aludindo também a todo um itinerário da arte até à Antiguidade Clássica.

Nos grandes mitos do amor que dominam a cultura ocidental. Mitos vogando na bruma dos tempos com pares que acabam por se espelhar em casais de trágico percurso também no real (Pedro & Inês, etc.). Ou reconduzidos a uma cartografia imaginária da relação amorosa como a da Carte du Tendre (séc. XVII), de autoria conjunta (Catherine de Rambouillet, Madeleine de Scudéry e outros), mapeada por François Chauveau no romance de Clelia, Histoire Romaine (1654) e retomada pelo Abbé d'Aubignac em Histoire du temps, ou Relation du Royaume de Coquetterie (1654, 1655, 1659).

Na reflexão entre feminino e masculino ao espelho, em diálogo e vocalizações na representação de tipologias de uma pelo outro e vice-versa: a de uma Christina Pisan (A Cidade das damas e O Tesouro da Cidade das Damas), em resposta ao popular Romance da Rosa, de Jean de Meung e Guilherme de Lorris, que ecoou pela Literatura Francesa, mas também por Petrarca e Dante, John Gower e Geoffrey Chaucer, etc., perspectivas em confronto argumentadas em casos.

Na “Jurisprudência do Amor”, de Leonor da Aquitânia (1122 - 1204), com os respectivos “tribunais” ou “cortes do amor”, controversos julgamentos por mulheres de casos amorosos em função do ideário do amor cortês e das suas regras.

Na confluência das tradições trovadoresca (profana) e das Cantigas de Santa Maria (religiosa) que deu ibérica identidade a esse feminino com uma figuração do feminino convocada por Florbela Espanca, Natália Correia e Maria Teresa Horta, dentre muitas.

No devaneio de Buarque e meu, enquanto o ouço, eis algumas evocações de Lia Rosa, dessas Lia e Rosa, lendo Rosa, cujos nomes sinalizam diferentes esferas: a da leitura em imperfeito pretérito (Lia) e a da Rosa, símbolo da poética barroca e romântica, mas também do secretismo e esoterismo, quando associada à cruz (Rosa-Cruz), permitindo recuar até à génese da cultura ocidental, quando Oriente e Ocidente estavam em íntimo diálogo.

Lia / No barco de Rosa/ Rosa/ Na ilha de Lia… A associação dessa Lia Rosa à ilha e ao barco transporta-me, ainda, para águas mais pregnantes do imaginário de cavalaria, arturiano e graálico, onde a magia se espelhava nas fadas, elfos, duendes, feiticeiros, deusas e… A Dama do Lago, fada ou sacerdotisa guardiã de Excalibur que leva um moribundo Artur para a brumosa e mítica Avalon, dando origem a tantas outras versões do mito messiânico do Encoberto cultuado na Europa Ocidental desde o século XII. Ao lado dela, igualmente embebida de magia, outra dama se vislumbra convocando os ideais de cavalaria medievais: La Belle Dame sans Merci, balada de John Keats com título de anterior poema de Alain Chartier, que Dante Gabriel Rossetti e Arthur Hughes, John William Waterhouse e Frank Bernard Dicksee desenharão. Sedutora e seduzida, que deixa o seu amador entregue à solidão e ao desalento, à busca sem rumo… Cat Stevens cantá-la-á em 1970.

Reconduzo o devaneio de convocações que Chico Buarque ritma para nós (fugas dentro de fugas) aos seus lugar e meio simbólicos, passando o testemunho a outras figurações do feminino pelo nosso autor… Na ilha de Lia, Lia, Lia / No barco de Rosa, Rosa, Rosa

O pintor pinta no tempo respirado […] Pinta o quadro dentro do qual o quadro Se tece malha a malha como em tear a teia O outro quadro convocador do convocado

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Notas

1 Sobre este assunto, remeto para o meu prefácio a O Livro de Cesário Verde, Porto, Edições Caixotim, 2004: “O Livro de Cesário Verde: Quatro Estações em Câmara de Arte e Prodígios”, pp. 9-35 [incluído no meu livro Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2006: pp.29-105]. Remeto para a leitura do volume de Ronaldo Cavalcante (coord.) Essas mulheres: o protagonismo da mulher na canção de Chico Buarque (S. Paulo: Recriar, 2021), em que colabora com este fragmento dedicado a “Lia Rosa” em encantado diálogo com Isabel Ponce de Leão e Ivoni Reimer.