A cultura museológica que hoje se conhece, surge no século XXI sintomaticamente a um contexto pós-modernista profundamente fraturante, alterando as relações entre o ser e o saber, numa tentativa orbitada de estimular no público, cada vez mais heterogéneo, o conhecimento que não só objetivamente as encara, mas subjetivamente se supõe.

Num gesto reminescente, de contornos preambulares, recordamos a partir do núcleo da esfera museológica, o seu início, ao qual lhe foi conferida uma certa solenidade, uma aura aparentemente irreversível que tornava o espaço simbolicamente fechado, separado da vida quotidiana (à parte das elites) produzindo uma memória de um passado ao serviço das intenções centralizadas de um estado moderno. Na verdade, apenas acolhendo aqueles que já adquiriam por outras vias, um capital de conhecimento e de interesse pela arte, pelo passado, pela ciência, etc.

O caráter quase fúnebre, marcado pela acumulação tradicional de objetos sem interesse pelas suas múltiplas significações, ostentaram o discurso da cultura dominante, fomentando uma imprecisão e incapacidade construtiva de fixar com precisão o passado. As ressonâncias projectaram-se estruturalmente, provocando uma segregação evidente entre classes sociais, aguçando o domínio ilusório e arrastado, das elites.

Aprofundaram-se as obliteradas relações entre o ser humano com o seu passado e a sua natureza.

Assinalada a advertência sobre um dispositivo alimentado por sistemas oligárquicos, ganha peso uma consciência filosófica focada na causa do espírito humano e, da sua própria existência concreta. Manifestou-se o pensamento visceral sobre a produção da história enquanto resultado de uma dialéctica infinita entre trajectórias individuais, operadas apenas coletivamente.

A premissa que se desdobra sobre o esforço em produzir um passado comum, gerado pela coletividade, contrastando com a ideia do passado ser responsável por nos definir, modificou profundamente a estratégia e domínio museológico, subtraindo-o à posição de dispositivo de intervenção sócio-cultural, que examinava calmamente o seu contexto que lhe é proposto.

Rompeu-se, gradualmente e de forma progressista, uma hierarquia, uma atitude, sintetizada, que deixou de explorar exclusivamente a narrativa tradicional de acumulação desinteressada do objeto, ostentando o discurso da cultura dominante, para abrir caminho a uma reformulação estrutural sobre um conjunto de propriedades inerentes ao dispositivo, colocado sobre desconstrução. Asseguraram-se os princípios de conservação e da arquivística, mas agora focado na promoção de um futuro que presta tempo ao tempo, envolvendo e propondo ao ser humano emancipar-se, perante as diversas manifestações por ele produzidas.

Propriedades alavancadas através da pedagogia, tornando cada vez mais democrático o acesso à informação e, por sua vez, ao pensamento crítico e subjetivo. Em última instância, conduziu a uma participação gradualmente mais emancipada do espectador, gerando novos conceitos e paradoxos que modificam o presente e o futuro dos museus, assim como, da própria leitura sobre o passado, como da obra de arte.

Perante estas condições, responsáveis por encurtar a distância entre o visitante/espectador e o museu, permitiram aperfeiçoar, a partir da sua base museográfica, estratégias mais envolventes, com o objetivo de recuperar uma maior procura social. Reformulações que se prestam sobre um devir social e, acima de tudo artístico, que tem por base o domínio sobre diferentes noções filosóficas e, uma capacidade invariavelmente atraída pelo futuro, ao empregar conceitos interdisciplinares.

É neste ponto que as reflexões sobre as proposições da emancipação intelectual, podem entrar em jogo e, ajudar-nos a reformular o problema sobre o futuro e legado dos museus.

Tratam-se de reflexões filosóficas que cabem, submetendo-se às estratégias da especulação, entre meta-realidades que orbitem de modo desconstruído e progressista, sobre a lógica da relação pedagógica, com a intenção de suprimir distâncias abismais entre distintos intervenientes. Que, por sua vez, formem indagações transdisciplinares sobre os desafios que a arte levanta com base na sua visão, invariavelmente inquietante, em busca da evolução. Distópica e desorbitada, uma arte simultaneamente ensimesmada e exteriorizada sobre as suas pesquisas ontológicas. Trata-se do paradoxo do espectador que num jogo de tensão se emancipa e propõe ativar-se no espaço, num compêndio de relações, manifestadas entre elementos e propriedades materiais e imateriais1. Trata-se de uma recente estrutura curatorial que propõe olhar sobre estas preposições e traduzi-los com a responsabilidade, através de conceitos heterodoxos.

Embora sintetizados, estas ponderações, que convém hoje examinar sobre o presente e futuro do dispositivo que sustenta a nossa relação com o tempo, radicam-se sobre o devir museológico. Isto é, estabiliza-se sobre o museu a responsabilidade de consubstanciar a relação do ser para conhecer, plasmando através da manifestada pedagogia uma maior precisão do passado, e como tal, porventura uma maior abertura e sustentabilidade para o futuro.

Entre conceitos ambíguos, simultaneamente afastados e unidos, encarando-se por via do espírito do seu tempo (Zeitgeist), a mediação e simulacro, imagem e a realidade aumentada, atividade e passividade, a posse de si e a alienação, significam formar um futuro amplamente humano e sustentável de natureza mais ecológica, em que o museu não se encontre apenas numa posição ensimesmada, mas também exteriorizada, desenvolvendo eco-museus, museus dispersos por várias unidades, parques naturais, tornado num dispositivo de eco-conservação. Acima de tudo, traduz-se num dispositivo composto por uma ampla rede de influência, responsável pela promoção de compromisso com o futuro e, sobre todos os seus pressupostos inerentes.

Perante estes processo de indagação, colocado sobre pensamento crítico, imagina-se a viabilidade destas idealizações futuristas, plantadas sobre a ideia de um museu admitido à metamorfose, em sentido mais orgânico, na relação crítica da arte com o espectador emancipado, assim como, no esforço por produzir um passado comum. O museu será então, um espaço de arquivo não só de objetos, mas de valores e experiências imateriais, inerentes à condição humana, tornando a memória num agente útil para a sustentabilidade não apenas da sua própria condição, como do próprio espaço em que se encontram.

Referências

1 Rancìere, Jacques. O espectador emancipado. Orfeu Negro, Lisboa.
Guillaume, Marc. A política do património. Campo de Letras, 2003. Porto.
Nietzsche, Friedrich. Ecce Homo. Imprensa Lucas & C.a L.a, 1979, Lisboa.
Rancìere, Jacques. O espectador emancipado. Orfeu Negro, 2022. Lisboa.