A perspetiva de existir ou analisar a arte a partir do interior do corpo ou, mais propriamente, analisar a apropriação artística da visualização desse interior não é de hoje, pois que, desde a Antiguidade Clássica, se registou um reconhecido interesse pela anatomia, sob diferentes perspetivas, na tentativa de desvendar os seus mistérios e a busca da proporção, da beleza exacta que permitisse aproximar o mundo dos homens ao dos deuses.

Com a evolução dos meios técnicos de diagnóstico e produção de imagem, o corpo adquiriu um maior grau de transparência e o seu interior tornou-se mais acessível e visível, especialmente com o advento do raio-X, sem necessidade de lhe provocar dano, sendo agora possível curá-lo, seguir uma terapêutica sem intervenções invasivas ou procurar “a alma”, o que acabou por despertar, para além do interesse médico e científico, um interesse artístico nessa “invisibilidade visível” uma vez que, o que antes era invisível e restrito à medicina, se tornou unilateralmente visível e público, a partir, também, do momento em que essas imagens passaram a ser divulgadas pelos próprios pacientes e se alterou o paradigma da visão de olhar para, para olhar através de

As imagens saíram do espaço médico para o grande público através da sua divulgação pelos media.

As filmagens de intervenções cirúrgicas, separação de gémeos siameses e de programas iniciados pela televisão holandesa nos anos 1960 em que médicos e pacientes discutiam ao vivo as imagens das intervenções, a par com o cuidado na produção colocado nos close-ups, e na voz da narração, libertou a imagem do olhar clínico passando para o olhar do cidadão comum e daí, para a arte numa apropriação artística que já tinha tido relevo na literatura com “A Montanha Mágica” de Thomas Mann.

Com efeito, o autor disserta na sua obra sobre a suposta objetividade dos raios-X no contexto de outras tecnologias representacionais, forçando o leitor a reconsiderar as dicotomias assumidas entre instrumento e observador, entre objeto e representação e entre ciência e arte, levando a que, um número crescente de pessoas perdesse o receio de mostrar o seu íntimo, falando do seu problema ou doença, passando a exibi-lo, tornando esta transparência numa presença cultural do interior do corpo.

Um conceito de arte assente em novos aparelhos médicos que criaram um curioso paradoxo: sendo as imagens obtidas por dados informáticos e numéricos a imagem não existe mesmo, a imagem que existe é obtida através da leitura desses dados numéricos conduzindo a que um corpo transparente seja a sua ausência, produzindo novas imagens e acessos transformando-se em “extensões do nosso corpo, próteses do corpo social”, como quando, por exemplo, se faz referência à radiografia ou ao TAC com o possessivo nosso como extensão do corpo transformado em foco artístico.

Um trabalho artístico interventor, que manipula cromatismos, metáfora da força da vulnerabilidade, manipulação genética, fragilidade do mundo corporizado no reflexo do trabalho estético do artista, como, por exemplo, no trabalho de Mónica Mansur a quem interessa a reflexão sobre a reprodução mecânica as possibilidades da imagem mediada, a reflexão sobre o próprio trabalho, um exercício de metalinguagem, numa linha de pesquisa permanente, uma linha que se revelaria na busca pela imagem em si, descolada do “real verdadeiro ou natural”, produzida pela máquina e não pela “mão original do artista”.

Uma ideia que lhe surgiu com o desenvolvimento dos trabalhos que foi pesquisando, rodeada por uma arte que está no mundo, na vida e que não pode ser separada daquilo que os artistas vivem especialmente, no seu caso, rodeada de imagens médicas por culpa do seu marido médico. A partir da descoberta do raio-X intensificou-se a ideia de que as imagens médicas determinariam não só a validação óptica, mas também, o reflexo que o artista tinha do mundo, a doença ou o interior do corpo não seriam usados como forma de entretenimento, nem as imagens pretenderiam forçar uma provocação gratuita.

Em face disto, a discussão sobre a condição da arte e a sua relação com os média deverá centrar-se menos na inquirição sobre os seus meios, e mais sobre a experiência que proporciona. A experiência passou a ser o momento em que passamos a pensar a arte como experiência que nos transforma e, a estética, outra experiência resultante da relação do receptor com a obra de arte.

A isto não serão alheias as palavras de Anabela Sousa Lopes quando discorre sobre a questão do controlo, da dominação, da alienação ligada à velha dicotomia homem/máquina e a acentuação clara, da relação individualizada com as tecnologias num espaço fisicamente partilhado, a promoverem alterações ao nível da mobilidade e da fruição individual, colocando o receptor no papel de um interveniente activo em situações de escolha e mesmo de produção de conteúdos, da mesma forma, Kramer, debruça-se, também, sobre o papel primordial da transmissão nas suas várias vertentes, seja no facto de tornar perceptível o que é inacessível, de marcar a diferença como pré-requisito para a transmissão ou do nivelamento e articulação da diferença.

Com efeito, o tema da transmissão perpassa a Arte e a Técnica devido à sua capacidade de constante negociação com as diversas formas de transmissão, algumas delas, nem sempre ligadas ao médium, mas ao mensageiro cuja análise do modelo poderá reflectir diferentes estratégias de transmissão, da hibridização, à transcrição, da confiabilidade à complementaridade. Estratégias que levantam a questão sobre se esses diversos processos de transmissão não poderão espelhar um conjunto coerente de atributos concernentes à transmissão e medialidade.

A instrumentalização da sociedade de comunicação, refém da imagem, do imediato, do mecanismo reflexivo de projecção assente num sistema funcional diferenciado veio condicionar a noção da arte e o seu entendimento, deixando-a, ela própria, refém do aprisionamento do indivíduo na visão estética ou do gosto de transparência de um modelo teórico de representação baseado na percepção.

A questão que se coloca seria, portanto, pensar o lugar da arte (ou a arte como lugar radical e aberto, ou radicalmente aberto) e da literatura no seu pensamento, programa que seria deveras extenso e trairia de antemão, o problema do tratado já posto.

É, por conseguinte, e por coerência com o pensamento do próprio filósofo, necessário pensar no provisório como lugar da arte — que não vem de lugar nenhum e não vai a lugar nenhum, está sempre de passagem tentando o autor —, deste modo, articular a sua concepção de mundo e comunidade atentando na ideia do lugar da arte, do provisório, da construção permanente, da técnica, como um artefacto da natureza, também ela provisória por estar em mutação deixando no ar duas ideias interessantes sobre a ideia da arte reencarnar a possibilidade de, no limite da sua dissolução, no pensamento, que emana da ordem do especulativo entrar no imaginário, como vestígio, passagem, evanescência, efemeridade ao nível da constelação de Benjamin como se o campo da arte, o domínio das musas, fosse a possibilidade de uma visibilidade sensível, o triunfo de uma potência da arte, em que a efemeridade, representasse um conceito vazio por outro.

Assim, a ideia de arte como espaço aberto onde corre o vazio, caminho infinito onde a arte não se esgota, nem o gesto, nem o objecto, ajuda a explicar a apropriação artística da imagiologia na pluralidade da Arte/Artes, na comunicação global com múltiplos pontos de vista, na transmissão e no médium que transforma a mensagem.

Considerações finais

O sentido da arte ou o conceito da arte é um tema difícil e de apaixonante debate. Em arte, tudo o que vem depois cria a sua própria validade, fruto do seu carácter mutável. A arte, com a técnica, está em constante transformação e recriação, fazendo de novo, fazendo de dentro de si para fora e não de fora, isto é, da ordem exterior do médium existente para dentro de si.

A arte, para além de se ter libertado do espartilho dos elos culturais e das tradições, fixou-se num debate sobre o seu próprio entendimento, a valoração, a materialidade e imaterialidade, a produção, a apropriação artística, o espaço público e político. A mediação da arte regista estes e outros discursos em confronto com a volatilidade e sobrevalorização de mercados, temas acessórios que dificilmente se desvinculam do conceito abordado no presente ensaio.

O papel dos media na disseminação de imagens acabou por ter um impacto decisivo tornando esta cultura da imagem num evento psicológico e social com o corpo a transformar-se numa construção cultural mediada pelos instrumentos médicos e o artista a poder controlar tudo porque via o interior, uma verdade médica que passa a poder ser trabalhada de forma artística e ganhar também uma verdade artística por inerência.

O corpo, domínio privado, torna-se agora propriedade pública, espaço de visão e observação artística, criando um novo olhar que o conceptualiza como entidade permeável, chegando aos nossos dias, numa época sem pejo em expor o corpo à saciedade na televisão, que ignora e ultrapassa questões como cultura, facilitismo, ética e novas fronteiras, à representação de um corpo em permanente mutação. O papel da arte ultrapassou a mera visualização e disseminação do conhecimento no momento em que os dois campos misturados, arte e ciência exploraram no campo filosófico e conceptual criaram novos significados e levantaram novas questões.

Apesar do seu poder de sedução, a tecnologia não esgota o próprio real nem pretende aglutinar gostos e estéticas, mas antes contribuir para a melhoria de procedimentos e busca de novos caminhos com interesse no homem dentro do processo artístico. Há um fio condutor, comum à “arte humana”: o homem como centro da arte, objecto manipulável para uma arte virada para uma tecnologia que é apenas meio para esse conhecimento maior do “objecto artístico homem”, obtendo e criando uma nova identidade através da apropriação artística das imagens, uma apropriação interpretativa e uma concepção multidimensional da arte garantindo a autonomia e a liberdade própria da nova experiência técnica.

No fundo, os artistas ao procederem a uma apropriação artística das imagens médicas questionam a maneira como as novas tecnologias modificaram o nosso relacionamento com o corpo.

Com efeito, perdemos a vergonha, o pudor, falamos do corpo, do seu interior, exibimos as nossas mazelas ou, pelo contrário, rejubilamos com a nossa saúde, comentamos factos médicos, damos palpites, em resumo, transgredimos a fronteira exterior/interior ou por outra, os artistas romperam essa fronteira, procuraram a beleza inerente à estrutura interna do corpo, redefiniram a saúde e a doença e reduziram o espaço entre elas, tornando o corpo transparente, aproximando-o de uma massa única, sem rebordos, a caminho do corpo sem órgãos de Gilles Deleuze e Felix Guattari que, apesar dessa transgressão, se tornou num desafio complexo, incerto e transparente, numa sociedade de espectáculos, de espelhos e reflexos, frequentemente, fragmentária.

A experiência e o processo tecnológico estão ligados ao acto criativo e à invenção como um princípio que constitui uma articulação entre invenção e natureza. A técnica é ainda mais primitiva que a religião, ela reúne a elaboração e a satisfação de necessidades biológicas em si mesmas, ligando directamente o desenvolvimento técnico ao desejo e à intuição bastando recordarmo-nos, por exemplo, das primeiras pinturas rupestres efectuadas com recurso a instrumentos rudimentares. Técnica e arte constituem assim, um sistema de ligação da actividade e da existência na relação entre o que o homem produz e o que ele é, no universo.

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