Between the conception
And the creation
Between the emotion
And the response
Falls the Shadow
Life is very long

(T. S. Elliot)

Fecha os olhos e vê, diz Joyce na abertura do seu épico romance Ulisses. Georges Didi-Huberman traz-nos Joyce, e suas inquietações modernistas, quando reflete sobre o paradoxo da visão, ou daquilo que é visível: vemos o que nos olha. Movimento duplo em que “o ato de ver só se manifesta em dois”1 .

Ao lutar com as palavras, e ao reinventá-las, Joyce começa por falar da inelutável modalidade do visível: o olhar não é apenas um gesto, o resultado de sinapses na fisiologia humana, muito menos, o simples reconhecimento de formas apre(e)endidas, é um ato físico que precisa superar a volumetria do real, daquilo que se dá a ver, que se põe diante dos nossos olhos. A visão, e o visível, são matérias caras ao universo da arte, afinal não é a criação artística fruto da luta humana contra o esquecimento? Que podemos também chamar, de forma mais apropriada, desvanecimento?

Convocar Joyce para falar de uma exposição de artes visuais não é apenas um exercício de retórica. Orlando Franco, o artista, convoca-o na sua obra porque comunga com ele a mesma preocupação – como vencer a inelutável modalidade do visível? Como atravessar as superfícies e realmente ver?

Esta exposição faz parte de um conjunto de trabalhos que aparecem, pela primeira vez, em Burnout (2013), exposição realizada na Plataforma Revólver e continua no trabalho de curadoria artística que realiza em 2019 com a exposição Wait (Museu Coleção Berardo). Segundo o artista, o que estes projetos têm em comum é “o facto serem planeados e montados/instalados de uma forma potencialmente cénica e cinemática.” O potencial cénico e cinemático das obras está presente também no romance de James Joyce e na poesia de T.S. Elliot, a quem Orlando Franco pede emprestado o título desta exposição The eyes are not here, verso do poema do também modernista Elliot, The Hollow Man.

A visão apocalíptica do poeta, cuja fortuna crítica, de tão vasta não merece a pena ser aqui repetida, deixa marcas profundas num século que presenciou duas Grandes Guerras e tantas outras mais. Não é por acaso que a personagem de Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, repete os versos que encerram o poema de T.S. Elliot:

This is the way the world ends.

Da mesma forma que o poeta nos questiona sobre o que fica depois, quando deixarmos de ver, ou seja, quando morrermos, Orlando Franco põe em causa a nossa capacidade de ver para além do visível, de enxergar com nossos olhos que possuem uma fisiologia própria, que veem para dentro – pois não são os olhos que veem, é o cérebro, mas sem eles não alcançamos o que está diante de nós. O princípio do funcionamento do nosso aparato, ou dispositivo, visual, é semelhante ao do cinema. As imagens cinemáticas organizam-se e seguem a lógica das imagens que são impressas, por segundos, na nossa retina e que permitem assim dar sentido ao mundo, ao visível. E a ambivalência do ver e ser visto na arte é uma preocupação constante deste artista. No seu projeto curatorial, Wait, recorre uma vez mais à literatura, neste caso de Samuel Beckett, que pre-viu, com seus textos, o vazio que reinou no pós-II Grande Guerra.

Um vazio que gerou pessoas vazias: hollow people. E pessoas vazias não veem, porque o olhar tem corpo, tem volume, tem de atravessar algumas grades para chegar cá fora, como escreve Joyce. E o que Orlando Franco nos oferece é uma imersão num dispositivo cinemático que exige de nós a predisposição de fechar os olhos para finalmente ver. Deixarmo-nos afetar pela atmosfera criada e enxergar as peças – vídeos, gravuras, imagens em diversos registos que põem em causa o estatuto mesmo do visível, ou da visibilidade. É preciso que os nossos olhos sejam vistos pelas obras que, contemporâneas, se ligam indelevelmente ao modernismo – ao momento da História da Arte e da Cultura em que se reconheceu a fratura do humano e que produziu objetos que falam sobre a impossibilidade da criação, que refletem a perda, que se concentram no vazio. Esta exposição tenta, de alguma maneira, dar resposta às inquietações de Didi-Huberman:

O que é um volume portador, mostrador de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato uma forma – uma forma que nos olha?2

Notas

1 Georges Didi-Huberman (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Ed. 34, p. 29.
2 Didi-Hubernman, p. 35.