Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas n
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

(Hilda Hilst)

Miguel Cheta é um criador de imagens. Poderia começar este texto de outra forma e dizer que este artista é um criador de objetos. E ambas as proposições estariam corretas, porque os seus objetos apelam, sobretudo, ao sentido da visão, de uma visão amplificada, poderia dizer-se, de uma visão que perscruta o que está fora e o que está dentro de cada um de nós. Digo que o artista é um criador de imagens, o que parece redundante, mas, neste caso, penso especificamente na influência da fotografia no trabalho de Miguel Cheta – a imagem que ocupa tempo e espaço. A imagem que existe enquanto presença, revelada ou ocultada, de alguma coisa que captou. E essa ideia de captação, ou de captura, é um sintoma que se repete nas muitas exposições e na centena de obras feitas. Feitas e refeitas, pois há um arrastar de objetos entre exposições, entre dispositivos: é o caso da escultura composta por antigos bancos do Liceu de Loulé, que ocupa um lugar de passagem na exposição Todos nós nascemos originais e morremos cópia. Essa passagem é real e metafórica – está disposta no corredor que liga os dois vértices do edifício que acolhe as suas obras, um espaço complexo e de difícil ocupação. A peça esteve presente na exposição anterior do artista, que tratava da memória, ou melhor, duma memória específica de um lugar e de um tempo e também de um movimento – o da aprendizagem.

A complexidade do espaço nesta exposição mais recente exigiu do artista um esforço de contenção – a sua obra causa impacto pela subtileza, pela quase dissimulação/desaparecimento no espaço. Há uma peça que nos obriga a fazer um exercício de (re)conhecimento: encostadas à parede, separadas por um portal de tecido e armação de ferro, vemos uma planta e a sua fotografia. Entre o objeto real e a sua representação, há um espaço de passagem, que confunde o espectador. A planta, reproduzida mimeticamente pela fotografia de alta definição, põe à prova a capacidade de discernimento de quem vê, pois, a arte é, antes de tudo, linguagem. E, como tal, é organizada através de um discurso, mais ou menos percetível. Para quem recorde a obra de Joseph Kosuth, o deciframento é mais imediato, mas não se perde, ainda assim, o assombro. Como disse o artista norte-americano, que se tornou um dos maiores teóricos da arte contemporânea, “a arte a que chamo conceptual baseia-se num questionamento acerca da natureza da arte”. E, ainda nas palavras de Kosuth:

Por isso, é … um processamento, um pensamento reflexivo sobre todas as implicações de todos os aspectos do conceito de ‘arte,’ … Fundamental para esta ideia de arte é a compreensão da natureza linguística de todas as proposições da arte, sejam passadas ou presentes, e independentemente dos elementos utilizados na sua construção1.

Miguel Cheta não foge à comparação do seu trabalho com o de artistas que o precederam: assume-se como um recolector. E, pergunto eu, haverá outra maneira de ser artista em pleno século XXI, assoberbados que estamos, de tanta imagem que diariamente consumimos? Ao assumir a ideia de cópia de uma ideia, ou de um dispositivo artístico, Cheta assume a máxima de Carl Jung que deu origem ao nome da exposição: tornamo-nos cópia a cada livro que lemos, a cada imagem que consumimos, a cada texto, fotografia, desenho, a cada gesto que executamos desde tempos imemoriais. A maneira de tornar seu o gesto é através da organização de um percurso, da criação de uma narrativa através da disposição das obras.

Assim, o artista organizou, no espaço, objetos díspares e, ao mesmo tempo, semelhantes. Objetos mais ou menos densos, objetos que parecem não ocupar espaço. O que é uma contradição ou um paradoxo – um objeto ocupa espaço. A imagem escolhida para figurar no convite da exposição foi a de um desenho abstrato, em tons de terra. Círculos raiados como se algo contundente tivesse ferido a sua perfeita circularidade, maculado a forma pura. Na exposição descobrimos que esta imagem, um desenho, não está lá, como objeto palpável, mas sim como pura visualidade: o dispositivo utilizado pelo artista para nos mostrar este e mais um conjunto de desenhos é um projetor de slides e o desenho foi realizado sobre a própria película do diapositivo, uma imagem diminuta hiperdimensionada pela projeção. Trabalho laborioso e artesanal, pensa o artesanato como um gesto de literal handicraft, em que as ferramentas são manejadas pelas mãos do criador. As imagens abstratas aludem à ideia junguiana dos arquétipos – que estiveram sempre lá, desde que somos História e memória, e que permanecem em nós, nas nossas estruturas sociais e íntimas, nos nossos gestos quotidianos, como uma alma mater de tudo o que fazemos e somos.

Entramos na sala e ali permanecemos, quase hipnotizados, pela sucessão, pelo deslizar das imagens que se fixam e que passam num fluxo ininterrupto. A sala é precedida por uma outra, que apresenta uma obra suspensa que convida, ou obriga a circular à sua volta (os círculos, mais uma vez). O corpo é cúmplice desta apreciação e o sentido e a direção, mudam a visibilidade e a compreensão/apreensão deste trabalho: telas impressas em serigrafia, cada uma contendo uma palavra que forma, no final, uma frase que resume, no fundo, o processo de criação deste artista: o autor é uma hipótese improvável, tudo é revisitação. (Confesso que fiz o círculo no sentido contrário ao que era sugerido, e a frase continuou a fazer-me sentido.) Afirma-se a ideia de revisitação, de apropriação, de cópia. É com justeza que a exposição se chama Todos nós nascemos originais e morremos cópia. É a assunção do papel do artista como alguém que descobre, e revela, os objetos, para o mundo. A sua criação é um gesto de constante reinvenção, porque o espírito dos objetos já estava lá, no princípio, quando nos tornamos História e memória. Há uma peça, em particular, que me fascina: um velho projetor de slides que projeta, na parede nua, uma imagem única, colorida, abstrata, geométrica. Parece uma peça de Op Art. Quando ouvi o artista contar que encontrou aquela imagem ao restaurar o velho projetor, consigo perceber que o aparente desencontro das peças é isso mesmo – aparente. Tudo o que lá está segue um fio condutor que nos leva, e nos retira, do universo palpável dos objetos, que ocupam espaço, para o dos objetos que ocupam tempo: tempo de que precisamos para percorrer a exposição e para ver e rever cada peça e perceber a história que cada uma nos conta.

Ao entrar na exposição, deparamo-nos com um dispositivo de madeira, fixado à parede – uma antiga coluna de som que se converte numa espécie de espelho, que devolve o nosso olhar quando nos aproximamos. Vemo-nos, de seguida, reproduzidos em imagens infinitas, num jogo que encena uma mise en abîme narcísica, ou que nos leva a pensar em Georges Didi-Huberman – o que nós vemos e o que nos olha. A partir dessa encenação, que reproduz as formas circulares, presentes em quase todas as obras, decidimos que caminho tomar – seguir pelo corredor que nos leva a duas projeções fixas, numa sala escura, ou pelo lado oposto, que nos leva também a uma sala de projeção. A ideia de projeção, e dos aparelhos projetores, que são assumidos como objetos escultóricos (daqueles que ocupam espaço) leva-nos a pensar em dispositivos cinemáticos, não cinestésicos. Há uma simulação de movimento, nunca o movimento ele mesmo. O movimento que há está no corpo do espectador que percorre o espaço.

Numa sala há dois projetores que, em simultâneo, e sem paragens, projetam na parede nua duas imagens – um desenho feito pelo artista e uma imagem encontrada pelo artista. Não há acaso na arte, há escolhas conscientes, ou não, daquilo que o artista designa como objeto artístico e daquilo que assume como seu. Nesta mesma sala, encontra-se uma escultura, composta de dois vidros industriais suportados por uma armação de metal, que, na sua transparência, diz-nos muito das obras e do seu autor – que trabalhou o vidro até que ele ficasse com uma certa dobra, uma dobra que se repete e que não existe no suporte original.

A originalidade é subvalorizada na Arte Contemporânea, ou pelo menos, a ideia de originalidade que estava presente na Arte até ao início do século XX. De facto, somos originais ao nascer por sermos resultado de uma combinação única de genes, de momentos, de encontros. E vamos aderindo ao mundo fora de nós, que nos impregna com aquilo que ele é, com aquilo que ele sabe, e passa a fazer parte de nós. As obras desta exposição são originais, na medida em que foram feitas pelo artista, ou por ele foram montadas, retiradas do seu contexto primitivo e instaladas numa mise en scène que existe para reencenar o gesto primevo, sem o qual nada haveria, o gesto criador.

Nota

1 MoMA Highlights, New York: The Museum of Modern Art, revised 2004, originally published 1999, p. 257.