Em uma madrugada de um feriado de São Patrício, dia 19 de março de 1990, dois homens com uniformes policiais renderam os seguranças do Museu Isabella Stewart Garden (localizado em Boston) e, numa ação que durou pouco mais de uma hora, roubaram 13 obras de arte. Trinta e três anos depois, as obras roubadas permanecem desaparecidas e os responsáveis nunca foram identificados e presos. O museu, em memória, mantém as molduras vazias na parede, com a esperança de que as obras retornem a seus devidos lugares.

Apesar do que a maioria imagina, os bens culturais musealizados e/ou patrimonializados também são alvos de criminosos, sendo considerada como a terceira modalidade de tráfico mais grave do mundo. Nas palavras de Noah Charney, diretor da ARCA (Associação para Investigação de Crimes contra Arte):

O comércio ilegal de obras de arte e bens culturais está ranqueado pelo Departamento de Justiça dos EUA como o terceiro mais grave do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e armas. É uma atividade que gera fundos até mesmo para o terrorismo.

O Observatório Internacional de Tráfico Ilícito de Bens Culturais do ICOM (Conselho Internacional de Museus) destaca em seu site que cotidianamente em algum lugar do mundo, um objeto é roubado ou saqueado para ser vendido ilegalmente no mercado, sendo a falta de segurança para objetos culturais um dos fatores que mais impulsiona essas atividades ilícitas.

Ratificando esta ausência, Édouard Planche, especialista da UNESCO no que tange a crimes contra o patrimônio cultural, afirmou em sua participação no Seminário Proteção e Circulação de Bens Culturais: Combate ao Tráfico Ilícito, promovido em agosto de 2018 pelo Ministério da Cultura em parceria com o Itaú Cultural, que

uma vez que bens culturais são roubados já é tarde demais. É muito difícil restituir esses objetos [que] acabam indo parar em feiras de antiguidade ou sendo vendidos pela internet e é muito difícil rastreá-los.

Muito desse cenário se deve a falta e/ou ineficiente documentação desses objetos. Nesse sentido, o CIDOC (Comitê Internacional de Documentação do ICOM) destaca em seu site que

[a] documentação é essencial para todos os aspectos das atividades de um museu. Coleções sem documentação adequada não são verdadeiras coleções de ‘museu’.

Foi pensando nisso que uma medida adotada pela INTERPOL no que tange a crimes relacionados ao tráfico ilícito de bens culturais foi a utilização do Object ID, que é um padrão internacional de documentação que estabelece a informação mínima necessária para identificar arte e antiguidades (Thornes1). O Object ID foi criado em 1995 pelo Getty Research Institute, Instituto de Pesquisa da J. Paul Getty Trust, e tornou-se um padrão de referência mundial, entrando em vigor a partir de 1999.

Os inventários das coleções dos museus, quando tecnicamente bem desenvolvidos na sua descrição dos aspectos físicos, são a principal fonte para identificação de obras que se incluem na situação do tráfico ilícito de bens culturais e, sobretudo, porque representam os dados que servirão para integrar a base de dados de bens procurados que a INTERPOL disponibiliza para aduanas e outros locais de fiscalização, como também pode ser consultado por qualquer instituição ou pessoa física que se interesse por averiguar o assunto para tomar conhecimento da situação dos objetos, por exemplo, os compradores de bens culturais. Quando os museus não atendem ao padrão internacional, perdem as condições favoráveis para que a informação de busca circule internacionalmente.

Além da J. Paul Getty Trust, UNESCO, ICOM e INTERPOL, outras instituições passaram a utilizar esse padrão no que se refere a crimes de arte, dentre as quais podemos citar: FBI, Carabineiros da Itália, Polícia Metropolitana de Londres, Organização Mundial das Alfândegas, Instituto Tropical Real da Holanda, Confederação Internacional dos Negociantes de Obras de Arte e Associação de Revendedores de Arte e Antiguidades da Inglaterra.

O FBI afirma que o

crime de arte e bens culturais – que inclui roubo, fraude, saques e tráfico entre linhas estaduais e internacionais – é um empreendimento criminoso iminente, com perdas estimadas em bilhões de dólares por ano.

Devido ao grande prejuízo que o tráfico ilícito de bens culturais representa, uma série de normas e de legislação foi criada para a proteção. Embora se trate de precaução, pois a existência destes documentos não impede o tráfico auxiliam na redução e na recuperação das obras e punição dos responsáveis. Assim, existem documentos que funcionam em nível mundial, a exemplo das principais normativas internacionais para a prevenção ao tráfico de bens culturais, como a Convenção da UNESCO Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais (1970) e a Convenção do UNIDROIT sobre Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados (1995).

Vale dizer que, em 2006, após o roubo ao Museu da Chácara do Céu, o Brasil foi incluído na lista dos dez países com os maiores roubos de bens culturais no mundo. Também cabe registrar que, em decorrência de diversos crimes ligados ao furto de arte sacra no decorrer do ano de 2003, Rogério Carvalho do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), declarou em entrevista que grande parte desses crimes são previamente planejados e, inclusive, por encomenda. Ele chamou atenção para o fato de que por vezes existem antiquários por trás dessas ações, ainda que não se possa generalizar (Escossia2).

Kátia Bogéa, também do IPHAN, declarou em entrevista que

[é] fundamental o diálogo e atuação conjunta com outros órgãos. O comércio ilegal de bens culturais, em especial os arqueológicos, tem a internet como facilitador e, além disso, temos pontos sensíveis na fronteira com outros países.

Um desses órgãos é a DEMAPH (Divisão de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico) da Polícia Federal.

O ‘esquecimento’ se torna discrepante quando nos remetemos aos decretos brasileiros que reconheceram as Convenções da UNESCO e do UNIDROIT. Vale lembrar que, antes mesmo destas Convenções, já existia o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 que dispõe justamente sobre a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. Decreto este que inclusive é o responsável pela criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que depois passou a ser o IPHAN.

Existem muitas facetas a serem exploradas quando o assunto é referente a crimes ligados à arte e por extensão aos objetos musealizados. Não se deve focar apenas nos roubos e furtos ao patrimônio cultural, mas também a aquisição legalizada de uma obra de arte em leilões, sempre que está for utilizada para outros crimes como a lavagem de dinheiro. No entanto, essa modalidade de crime não é o foco desse artigo.

Pensando nessas diferentes modalidades criminosas, é importante mencionar novamente a ARCA que, de acordo com a proposta em seu site, é

uma organização de pesquisa e divulgação que trabalha para promover o estudo e a pesquisa do crime de arte e proteção do patrimônio cultural. Seus pesquisadores são interdisciplinares, pois trabalham em campos diversos, como: “direito, justiça criminal, segurança, estudos de museus, história da arte, arqueologia e gestão de recursos culturais.

Dentre alguns pontos elencados pelos pesquisadores, destacamos a utilização da ideia de o mercado de arte (il)lícito, porque ao mesmo tempo que esse mercado é algo legal, ele também é não-legal por abrir possibilidades de incentivo a crimes.

Notas

1 Thornes, Robin. (org.) Introduction to Object ID: guidelines for making records that describe art, antiques, and antiquities. J. Paul Getty Trust, 1999.
2 Escóssia, Alessandro. Para combater o tráfico de bens culturais. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 05 jun. 2018. Segundo Caderno.