A partir das nossas discussões sobre arte feminista no primeiro artigo da série, desdobramos para outro fator que é possível ser explorado dentro da arte performática de mulheres: a possibilidade de protagonismo de diferentes classes e grupos sociais antes apartados e/ou apagados do universo artístico, como pessoas negras, latino-americanas, entre outros. Por isso, nosso artigo pega carona no título da obra de Gayatri Spivak intitulada Pode o subalterno falar?
Dentro do universo artístico, a artista Carrie Mae Weems colocou as mulheres negras na frente de seu debate sobre as complexidades históricas e as consequências estruturais do poder descontrolado. Em suas performances, muitas vezes usando a si mesma como protagonista, ela reconstruiu a herança da identidade cultural afro-americana a partir de uma perspectiva feminista afro-diaspórica.
Embora tenha surgido nos estudos pioneiros do feminismo negro (Dorlin1), o conceito de interseccionalidade na verdade tem suas raízes no contexto social, histórico e político vivido nos Estados Unidos entre a década de 60 e 70, que foi marcado pelo desenvolvimento simultâneo do movimento dos direitos civis, do feminismo e da emergência do movimento hippie. A dinâmica criada pelo feminismo negro, bem como as características sociais de vários de seus teóricos foram fundamentais na gênese e desenvolvimento desse conceito.
Nesse sentido, a própria categoria de mulheres – objeto político do feminismo – tornou-se objeto de debate a partir da década de 80, quando feministas negras, latinas e lésbicas dos Estados Unidos criticaram o feminismo hegemônico da época por não levar em conta suas diferenças. Elas não se sentiam representadas em um feminismo centrado nas mulheres brancas, ocidentais, heterossexuais e de classe média (Dorlin1).
Se o pressuposto da categoria mulheres como objeto da emancipação feminina se torna inoperante, toda a questão da emancipação feminina é questionada. A esse respeito, Butler argumentou que o nós feminista é sempre uma construção que deixa de fora uma grande parte do grupo que afirma representar (Butler2).
O desenvolvimento das teorias de interseccionalidade dentro da pesquisa feminista forneceu a base para a colaboração entre escolas de pensamento feministas díspares. Como apontou a socióloga Danielle Juteau3, o paradigma feminista da interseccionalidade torna possível introduzir relações sociais de sexo nas teorias da interseccionalidade. Juteau argumenta que a interseccionalidade é materialista e feminista por enfocar as relações de dominação constitutivas das categorias sexuais como alguns de seus argumentos.
Assim, as mulheres são confrontadas a cada momento com a problemática da feminilidade, porque suas mentes e personalidades, suas atitudes em relação a seus próprios corpos, e até mesmo a linguagem com a qual usam para pensar, são todas irremediavelmente comprometidas por palavras, ideias, leis, instituições, religiões e artefatos culturais, todos criados pelo patriarcado e projetados para definir feminilidade, a fim de limitar, controlar e reprimir as mulheres.
É essencial ter em mente a interligação das relações de dominação se quisermos compreender como se manifestam as desigualdades próprias dos mundos da arte e da cultura, por exemplo no acesso diferenciado às carreiras artísticas ou aos próprios espaços que gozam de um status mais “refinado” de cultura, como os museus.
As análises interseccionais, portanto, fazem mais do que apenas olhar para a interconexão das relações de dominação. Eles examinam seus efeitos e influências recíprocas, levando em conta a construção histórica das relações sociais e reconstruindo a maneira pela qual diferentes lutas se interligaram ao longo do tempo.
A frase o pessoal é político é frequentemente associada à segunda onda do feminismo nos Estados Unidos. Era importante radicalizar as noções de intimidade, trabalho reprodutivo, desigualdade salarial e trazer para os territórios políticos o que era considerado matéria privada. Mas, no caso das mulheres latino-americanas, às vezes pode ser interessante inverter a questão: como o político se torna pessoal? Essa e outras questões impulsionaram variadas práticas de artistas performáticas femininas em países como Brasil, Venezuela, México ou Colômbia. Seu trabalho representa as diferentes formas que a resistência pode parecer e continua a ser relevante com o passar do tempo.
No entanto, a artista e pesquisadora Alex Martinis Roe4 alerta que usar a estética feminista para reivindicar credenciais feministas é problemático, pois se corre o risco de historicizar o feminismo e gerar nostalgia por um passado ativista que trabalhou em direção a uma agência culturalmente específica para a artista feminista. Essa agência precisa ser adaptada às condições contemporâneas, onde os artistas são adeptos dos muitos meios de autorrepresentação e crítica do olhar, e estão muito mais familiarizados com a dinâmica autor-público.
Dessa forma, entre as artistas latino-americanas que exploram o campo da performance em seus trabalhos, podemos citar a cubana Ana Mendieta. Apesar de ser nascida em Havana, aos 12 anos, emigrou com sua irmã Raquelin para os Estados Unidos através de um programa colaborativo entre instituições de caridade e seus primeiros anos nesse país foram em meio a lares adotivos e orfanatos. Com o passar do tempo, Ana se interessou pelo campo das artes e desenvolveu uma prática artística constituída por uma narrativa autobiográfica, especialmente com a série Silueta, que consistia em criar silhuetas em lama, areia e relva com materiais naturais.
Outra artista com um trabalho bem provocativo é Patssi Valdez, uma artista mexicana que também vive nos Estados Unidos. Ela foi uma das fundadoras de um importante grupo artístico do leste de Los Angeles conhecido como Asco. Todos os membros eram mexicanos e o nome do coletivo faz uma referência direta ao significado da palavra Asco em espanhol, que é nojo ou repulsa. O nome captura tanto o sentimento visceral contra o racismo e xenofobia violentos que atormentavam a cidade de Los Angeles naquele momento, quanto a autoafirmação das táticas subversivas do grupo que vieram a definir sua prática criativa. Juntos, ao longo de quinze anos, eles exploraram diferentes meios, como fotografia, arte performática e grafite. Com a série de trabalhos intitulada No-Movies, o grupo evocou códigos cinematográficos fazendo uma crítica à indústria de Hollywood. Nessa performance, Patssi poderia se tornar uma estrela em um sistema que excluía outras identidades.
Assim como o Asco, o Polvo de Gallina Negra também era um coletivo de artistas mexicanos. Mas com algumas diferenças: era um grupo baseado no México e composto apenas por artistas feministas, sendo o coletivo de arte pioneiro a trazer a pauta feminista nesse país. Suas fundadoras foram Maris Bustamante e Mónica Mayer. Após tumultos estudantis turbulentos durante a década de 60 no México, uma nova geração de artistas emergiu com interesse em práticas coletivas, sendo rotulados de Os Grupos e entre eles estava o Polvo de Gallina Negra. Suas integrantes questionavam a cultura machista do México e o papel das mulheres nos meios de comunicação de massa por meio de humor e práticas que envolviam suas vidas privadas. Para a performance ¡madres!, um projeto de longo prazo que questionava a maternidade, Maris e Mónica decidiram engravidar ao mesmo tempo.
Outra artista a explorar o tema da gravidez é a cubana Marta María Pérez Bravo. O trabalho da artista descoloniza o corpo materno de uma visão tranquilizadora, mítica e cristã da maternidade, provocando uma visão conflitante dela. Ao mesmo tempo, o meio que ela emprega fala uma língua transnacional, unindo fatores locais com globais. A artista, cuja cabeça e pernas são cortadas do quadro, brande uma faca contra sua barriga. Ao fazê-lo, ela cria oximoros inesperados em sua representação antirromântica da maternidade: um corpo carnal grávido, renderizado com realismo e retratado nu em sua totalidade visceral, aparece tão solene quanto um lugar de culto; é enriquecido com associações sagradas, uma vez que traz referências às tradições de Santería e Palo Monte, religiões afro-cubanas muito exploradas nas intervenções de Marta.
Através dessas fotografias, a artista examina sua própria gravidez e o momento após o nascimento com um olhar aguçado, como uma maneira de conhecer um corpo subsumido a uma metamorfose constante; nesse processo de (re)descoberta, o corpo é concebido como algo novo, desconhecido e descolado de seu conhecimento prévio (Betterton5). No entanto, sua cabeça é muitas vezes cortada da composição, um expediente que esconde a identidade do artista e confere a essas partes do corpo uma demanda de identificação universal – independentemente da distinção de uma única mulher.
Dessa forma, ver a artista à beira de cometer um sacrifício – ou talvez o sacrifício de seu próprio corpo – é um gesto que contesta as tradições da Santería e Palo Monte, segundo as quais mulheres grávidas não podem realizar ou auxiliar sacrifícios de animais que estão sendo realizados, isso porque, quando seu corpo empreende uma metamorfose biológica, torna-se um perigoso e monstruoso local de poluição e fonte de pavor, sujeito ao viés de um conjunto patriarcal de valores (Ussher6).
Se o corpo da mulher é um objeto de desejo e adoração na história da arte, o mesmo não pode ser dito do corpo da mulher grávida. A mulher grávida deve se resguardar dos olhares do público, afinal ela está gerando um novo ser vivo em seu ventre. Um discurso-chave sobre a gravidez diz respeito à noção de controle – das mulheres, de seus corpos e de suas atividades reprodutivas – por meio da medicalização do parto. Muitas pesquisas atualmente têm sido centradas nas mulheres grávidas como indivíduos submetidos ao poder das instituições médicas. Basta ver o debate sobre violência obstétrica, por exemplo.
Notas
1 Dorlin, Elsa. Do uso epistemológico e político das categorias “sexo” e “raça” nos estudos de gênero. Revista Periódicus, v. 1, n. 5, 2016, p. 254–271.
2 Butler, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
3 Juteau, Danielle. Un paradigme féministe matérialiste de l’intersectionnalité. Cahiers du Genre, v. 3, 2016, p. 129-149.
4 Roe, Alex Martinis. To Become Two: Propositions for Feminist Collective Practice. Berlim: Archive Books, 2018.
5 Betterton, Rosemary. Maternal Bodies in the Visual Arts. Manchester: Manchester University Press, 1999.
6 Ussher, Jane. Managing the Monstrous Feminine. Nova York: Routledge, 2006.