Certo dia, li uma postagem que dizia: “o encontro da ciência com a arte”. Fiquei a pensar: a ciência também é arte? E, por sua vez, a arte é uma ciência? Digamos que a arte de fazer ciência e a ciência da arte são potências ricas do nosso imaginário. Gaston Bachelard diz que “o imaginário tem o tom da realidade”. Quem sabe, Corbiniano Lins, como era conhecido, entendesse muito bem da ciência da arte, ou melhor, da arte e sua ciência para produzir suas obras?
Nascido em Olinda, Pernambuco, em 2 de março de 1930, fez da sua vida um encontro da ciência com a arte. Seus traços sofisticados revelam a sutileza do cotidiano numa mistura do belo com o designer da vida. Seu rico imaginário tem raízes na sua infância com sua avó e tias. Foi observando o poder e o trabalho das mulheres de sua família que ele construiu o requinte e a finura para compor suas peças. Corbiniano perdeu seu pai aos oito meses de vida e passou a observar as relações de poder, os costumes, a culinária pelas mulheres de pele negra de sua família. No potencial feminino, ele fez história. Depois, inspirado nas obras do artista plástico Abelardo da Hora, produziu sua marca colocando proeza, sentimento e gingado das mulheres em suas peças. Seu trabalho traz o grito pelo brilho sutil existente na força das mulheres brasileiras. Estudou na Escola Aprendiz Artífices de Pernambuco e começou a pintar em 1949. Em 1950, fez sua primeira exposição.
Corbiniano também fez parte do movimento de Arte Moderna do Recife, juntamente com Gilvan Samico, Abelardo da Hora, Celina Lima Verde e Reynaldo Fonseca. Fundou o Clube de Gravura da Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR) em 1952. Suas peças ganharam destaque por ressaltar a seriedade da sutileza do imaginário cotidiano com bagagem histórica, como "O carteiro", esculpido em pedra, que está na frente do prédio dos Correios e Telégrafos do Recife, na Rua do Sol.
Foi desenhando, aos oito anos, que ele construiu, com suas sutis mãos, um relacionamento com a arte. Sua timidez conduzia suas obras com elegância. Sutileza e formosura também construíram seu imaginário, que, neste ano de 2024, comemora-se o seu centenário com uma exposição realizada no shopping Rio Mar do Recife, Pernambuco.
O projeto ganha esse nome por conta do álbum de serigrafias: Recife de janeiro a janeiro, de 1974, encontrado durante a pesquisa curatorial, com 10 serigrafias pouco vistas pelo grande público e um texto de Hermilo Borba Filho que leva o título “Corbiniano: a festa”. A exposição conta com a curadoria de Bruna Pedrosa e educativo elaborado por Carol Corrêa, colaboradoras do artista ainda em vida.
Há uma dose de brasilidade com galhardia nas suas peças, que projetam sentimentos, como o painel em azulejo situado na Avenida Cruz Cabugá, no Recife, Pernambuco, feito por Corbiniano em 1967, nas comemorações dos 150 anos da Revolução de 1817.
Foram diversas obras que Corbiniano deixou no mundo. Artista singular, impressionou com sua ciência no fazer de sua arte. Podemos dizer que Corbiniano traduziu o sentimento do cotidiano nordestino pela timidez com nobreza no seu rico imaginário. De aura sublime, conquistou o público pela simplicidade. Disse Dona Débora, viúva de Corbiniano, na frente da calçada de sua casa no bairro da Iputinga, no Recife, que ele era um homem muito simples. E simplicidade é sofisticação, já dizia o grande Leonardo da Vinci. Então, o que faz da arte uma ciência? Seria Corbiniano o mestre do encontro da ciência com a arte? Digamos que colocar o cotidiano de um determinado povo com seus costumes e, ao mesmo tempo, transmitir sentimentos revela uma ciência que a própria ciência desconhece. Não é por nada, mas disse Oscar Wilde a André Gide ao sair da prisão:
A minha vida é uma obra de arte. Um artista não recomeça duas vezes a mesma coisa ou, se recomeça, é um falho. A minha vida antes da condenação foi, quanto possível, perfeita. Agora é uma coisa completa. Mas teria um país o direito de ir ao encontro do poeta, realizando o crime de condená-lo, só porque incapaz de compreender a sua obra? Não fizeram outra coisa os bárbaros que sucessivamente entraram em Roma, quebrando mármores, esfarelando mosaicos, torcendo bronzes, desventrando túmulos. E essa obra era de fato mais perversa que qualquer outra grande obra? Não.
Toda grande obra plástica é uma perversão do sentimento geral porque o modifica melhorando-o. Não foi Leonardo um perverso criando um sorriso e um olhar que dizem coisas infinitas? Há nada de mais perverso que o Perseu de Benevenuto? O reler uma biblioteca de várias épocas seria uma lição da perversão que melhora e sugere outros estados da alma. O percorrer as galerias de arte é sentir palpável a perversão fazendo nascer outras ideias e outros prismas da vida.
Quando, porém, o artista é gênio, como Shakespeare, como Phidias, como Cellini, como Botticelli, como Buonarroti, como Murillo, como Goya, como Balzac, a sua obra eternamente age através das épocas, modificando temperamentos, sistemas de moral, pervertendo a atual num sonho de melhor, e sempre com prismas novos e novos aspectos.
(João do Rio, 1911).
Desde então, o provocativo Corbiniano resumiu em festa as suas peças. Criou a escultura Iracema, que está em Fortaleza, Ceará:
Suas obras foram expostas em galerias, museus, espaços culturais e salões de arte no Recife, Olinda, São Paulo, Rio de Janeiro e em países na Europa e na América Latina, a exemplo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, agências do Banco do Brasil em Luxemburgo e Barcelona (Espanha) e acervo particular do colecionador Hendrik Zwarenstein, nos Estados Unidos.
Riqueza é expor seu sentimento através da arte. Suas obras, além de exibir sentimento, mostram a história. Corbiniano reuniu a família para mostrar suas obras pelo Nordeste. Seu filho Chico Lins leva em sua bagagem o tesouro que seu pai deixou com muito afeto:
Meu pai juntou a família. Eu, minha mãe e meu irmão mais novo e fomos fazer um tour por Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Ele queria justamente mostrar obras dele pelo Nordeste. Chegamos a Fortaleza, conhecemos "Iracema" e o "Vaqueiro". Por fim, não tínhamos conseguido chegar até a "Rendeira". Lembro bem que naquele tempo, 1997, não tinha GPS. Quando estávamos voltando para o hotel, encontramos por acaso o Banco do Brasil e lá estava a "Rendeira". É uma figura linda e com muito movimento.
A vida de Corbiniano foi uma obra de arte. Mostrou ao mundo seu talento, pervertendo o cotidiano em obras de arte. Acredito que sábio é sempre quem está sintonizado com a sua canção celestial, e assim era Corbiniano, um baluarte da sofisticação do designer da vida.