Há uma arte feita pelas ruas das cidades, que, embora esteja bem à vista, não está nos museus ou livros. Às vezes podemos até tropeçar nela, está aos nossos pés. Você já deve ter visto por aí, mas talvez nunca tenha pensado a fundo nela.
O nome é Aerosolgrafia - escrita com aerossol - uma forma de expressão rica e bela, mas subestimada pelo mundo acadêmico e círculos intelectuais. É feita geralmente ao vivo e in loco pelas calçadas de muitas cidades, ela usa o spray como seu material principal, muitas vezes o suporte são telas de papel cartão, lisas em um dos lados, o que faz com que a tinta possa ser retirada depois de espalhada, o que é a grande sacada deste tipo de pintura. Mas também pode-se usar outras plataformas como madeirite, vidro, azulejos e alguns tipos de tela em tecido e plástico. Mesmo o nome é uma questão controversa, dependendo do lugar pode ser chamada de diferentes formas. Não há bem um consenso. E os próprios artistas que trabalham com isso se nomeiam muitas vezes apenas como pintores ou artistas plásticos.
O ateliê é a rua
Mas afinal, de que estamos falando? Bom, ver a coisa em ação é a verdadeira experiência, mas vou tentar dar um panorama. A aerosolgrafia é uma arte feita basicamente nas ruas, e por isso tem o charme que só as feitas nesse local público sabem ter. Também por isso quase toda a história dela é oral. Sendo as técnicas e origens transmitidas de artista para artista, com quase ninguém sabendo exatamente onde surgiu. No Brasil, embora haja muitos pintores, quase não se encontra escritos sobre isso.
Ela é feita ao ar livre, e a premissa do artista ir aonde o povo está, é totalmente verdadeira para as pessoas que produzem essa forma de expressão. Você vai encontrá-los nos grandes centros urbanos, nas praias, em qualquer festival, na praça da cidade turística, nos arredores de um show de música e onde mais houver passantes, por ser uma arte essencialmente pedestre, pois depende de que as pessoas passem, geralmente caminhando, e as vejam.
Aerosolgrafia não é o mesmo que aerografia ou grafite, pois tem meios/técnicas peculiares e próprias.
O cenário é o seguinte: você está andando e se depara com uma pessoa pintando quadros ali no meio do caminho, o processo e criação acontecendo diante dos seus olhos, só isso já é uma experiência impressionante. Pelo chão, telas com desenhos, latas de spray por todo lado, o cheiro de tinta no ar, os movimentos ágeis do artista, espátulas, estênceis e folhas de revistas, uma caixinha de som para ambientar e chamar a atenção. Moldes os mais inusitados, raspadores e os dedos são também alguns dos vários utensílios que podem ser chamados de ferramentas.
De início, você fica observando e parece que não vai dar em nada, mas conforme o cara vai pintando, repintando, revirando e retirando camadas, vão surgindo paisagens meio familiares meio fantásticas.
A busca do original
Para explicar o inusitado de contar esta história e como essa arte é encarada, preciso começar fazendo um adendo interessante. Na época da faculdade de jornalismo, já na reta final, os alunos foram convocados a apresentar os temas de seus trabalhos de conclusão de curso. Então começou a correria, todos pensando em que se basearia sua pesquisa.
Acabou que o fácil é sempre o caminho mais seguido, não é mesmo? E começaram a surgir sugestões dos professores, sempre tentando nos levar a realizar análises de veículos de mídia, comparar o que a revista X e a Y falaram sobre um mesmo assunto, como o jornal tal tratou certa notícia etc. A maioria dos alunos topou imediatamente. Eu, de pronto, achei aquilo um porre e fiquei pensando no que poderia fazer de diferente.
Foi num dos intervalos das aulas, ao descer para o fervo que se formava em frente à universidade, em meio a uma verdadeira feira de alimentos e todo tipo de bugigangas as mais variadas, que encontrei minha pesquisa, um pouco afastado um cara pintava e vendia seus quadros para quem quisesse parar, era isso! Foi assim que fiquei amigo dele e perguntei se me ajudaria a contar a história daquilo, a resposta foi sim, senti que ele se mostrava interessado em falar sobre sua arte além de ficar orgulhoso em poder contribuir para algo que muitos viam, mas não conheciam as origens.
E lá fui eu. Dei o nome do meu projeto de *Aerosolgrafia: a arte como forma de comunicação (detalhe, até então eu nem sabia o nome daquilo). O que aconteceu foi que, em meio a tantos trabalhos lugar-comum, o meu claramente destoava dos demais e os orientadores pareciam perdidos com a minha proposta, não sabiam bem por onde me guiar, visto que nunca tinham ouvido falar daquilo ou de uma pesquisa que tratasse do tema. Foi um desafio mesmo, procurei e não havia bibliografia, pesquisa e quase nenhum registro escrito sobre aquilo.
Arte de rua, sempre foi tida como menor, popular, embora a arte tenha nascido ao ar livre ainda na infância da humanidade e só muito depois institucionalizada e levada para dentro dos muros de reis, museus, galerias e outras jaulas de normatização.
Houve momentos em que temi ser reprovado por não seguir os caminhos convencionais, pois de um lado havia escassas informações e de outros os professores que não entendiam muito bem como aquilo “somaria” à pesquisa de um estudante de comunicação.
É que na época, ingenuamente eu achava que um TCC era um baita de um trabalho sério. Mas no final é só provar que você sabe aplicar o que aprendeu na faculdade e que sabe escrever um texto científico. Não é preciso necessariamente apresentar algo novo, mas sim mostrar que o aluno tem capacidade de análise, o que é ruim, pois na maior parte das vezes resulta em trabalhos sem coração e sem espírito que, afinal, ninguém vai ler. São os ossos do academismo, bom, mas essa é outra história, bem longa e que daria um livro, ou melhor, vários.
Acontece que insisti, aquilo era bom demais para passar batido e afinal eu seria um dos pioneiros em falar do tema. No final passei, e a banca avaliadora ficou de cara, meu projeto provavelmente não foi o melhor, mas com certeza era dos mais originais.
De minha parte, penso que, se muito do trabalho do jornalismo é explicar o cotidiano, também é essencialmente buscar o novo e descobrir o que não foi contado. Afinal, o jornalista é também um historiador de seu tempo.
A lenda da criação
Pelo que se sabe, a aerosolgrafia, também chamada de SprayPaintArt ou Sadotgrafia, surge no México no início dos anos 80, a origem certa é difícil de situar, mas dizem que foi pelas mãos do artista plástico Ruben Sadot Hernandez, que já usava spray de tinta em outros trabalhos e que teria, ao tentar pintar sua bicicleta, acabado por pintar um quadro enquanto misturava as tintas num papel de teste. Percebendo que algumas formas surgiam ali, ele desenvolveu uma técnica usando moldes, raspagem e muitos testes.
Então ele resolveu ir para as ruas de La Zona Rosa e pintar ali mesmo em meio à passagem das pessoas seus quadros. Sadot, figura carismática, era, como muitos artistas da época, um filho da contracultura, influenciado por coisas como filosofia e metafísica, pela recente conquista do espaço pelo homem, música progressiva, quadrinhos e filmes de fantasia assim como pela estética muito em voga no período que ia em tudo de capas de disco, letreiros e até pôsteres de cinema. Juntando todas estas influências, seus desenhos iam na direção de coisas astrais e terrenas, misturando paisagens, animais e figuras humanas ao fantástico. Motivos recorrentes, numa mistura de realidade e sonho.
Além disso, ele colocava músicas para tocar enquanto pintava, que iam desde mexicano folclórico a rock progressivo, somando-se a isso o fato de pintar ali mesmo e as pessoas poderem observar o processo de criação, fez com que ele chamasse a atenção, logo outros se interessaram naquela nova forma de expressão, pois viam algo original e que podia ser feito com poucos recursos. Estes adeptos junto dele criariam a AMPA (Asociación Mexicana de Pintura de Aire) e a partir daí técnica ganharia vida própria nas mãos de outros que se aventuravam nessa nova forma de linguagem.
Por algum tempo, esta arte ficou restrita ao local onde surgiu, mas por ser algo “das ruas”, tinha naturalmente um caráter nômade e foi se espalhando pelo país, e atravessando as fronteiras para a Guatemala, Honduras, Costa Rica, e seguiu se espalhando por toda América Latina, também foi para os EUA devido à proximidade. Os artistas, para vender sua arte, estavam sempre em trânsito, o que fez com que rapidamente ela se disseminasse no continente. Daí para se espalhar pelo mundo foi um pulo.
O ritual
Muito da graça dessa arte é a forma como é feita, o todo digo, e como nos envolve. Comprar um quadro pronto é quase sempre uma coisa banal, não tivemos contato com quem o fez, não vimos o fazer, não sabemos de onde veio a inspiração.
A aerosolgrafia quebra toda essa parede, quando o artista se põe aos seus pés à sua frente, nos impressionando com suas lufadas e pinceladas, você está no centro dos acontecimentos, vê a coisa nascer, você pode até influir no processo de criação, mudar os rumos do produto final.
Esse fazer é um ritual, um misto de show, circo e performance. O barulho da rua, a escolha do som, o aroma de tinta, o uso da chama para dar o último toque, poder conversar com o criador, tudo isso é metalinguagem. Uma experiência dos sentidos. E por fim, acabar por levar algo personalizado para pendurar em casa, não é pouca coisa.
O que é o belo? Ou esquecido, mas não sem valor
Como disse, no Brasil não há quase nada documentando essas obras ou o fazer desses artistas. Talvez no México ou outros países tenham percebido seu valor cultural e haja algum estudo sério.
Pelos registros e pesquisas sobre ela serem tão raros, pode-se presumir que embora uma forma de expressão única, não goza do prestígio das chamadas grandes artes, sendo considerada uma “arte menor”. Em todos os anos que acompanho sobre ela, nunca ouvi falar sequer de uma exposição, seja num museu, numa galeria ou centro cultural daqui. Comprovando que é ignorada, melhor dizer desconhecida, por curadores, pesquisadores, promotores culturais e mídia geral. Embora certamente muitas pessoas tenham um quadro desses em casa e muitos dos que estão lendo isso já a tenham visto por aí.
A aerosolgrafia, mesmo com uma história tão rica e estando em todas as partes, é relegada a mera curiosidade, não sendo reconhecida em sua importância. Ignorada pela “grande arte”, ainda virá o dia em que será finalmente aceita e admirada com o status que merece, de fina arte e expressão genuína.
Mas tudo bem, por enquanto ela está ao nosso alcance, bem ali na esquina, aos olhos de quem quiser ver. E seus quadros tão incríveis podem ser comprados não por quantias exorbitantes, mas por preços que o povo (que também sabe o que é o belo) pode pagar.