Jamais as palavras de Michel Foucault1 soaram tão verdadeiras quanto no momento em que estamos diante das obras do artista brasileiro Vik Muniz.

O novo não está no que está dito, mas no acontecimento do seu retorno.

Vik Muniz tem o poder de trazer de volta obras consagradas com novos olhares, narrativas, problematizações e sentidos. Faz releituras de obras originais a partir do contexto social, histórico e cultural contemporâneo, produzindo assim um novo discurso criativo. Apesar de produzir obras explicitamente referendadas e baseadas em outras, Vik não pode ser acusado de plágio. Trata-se de paródias de outros artistas, de um retorno carregado de sua própria marca criativa.

No Aterro Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, Rio Janeiro, Vik fez ressurgir A morte de Marat, obra de 1793 de Jacques-Louis David. A aparente incompatibilidade do cenário do maior lixão do mundo até 2012 com o de Paris pós-revolução francesa nos parece genuinamente natural sob o olhar de Vik Muniz.

Uma banheira encontrada nas montanhas de resíduos, uma conversa com o catador Tião sobre filosofia, a sensibilidade ambiental e social do artista e sua incontestável potência criativa foram o suficiente para que Vik Muniz produzisse a obra Marat Sebastião: Pinturas do Lixo. Essa paródia de Vik em parceria com os catadores transformou-se em um ícone da Arte Contemporânea Mundial. Um bom conhecedor de arte reconhecerá imediatamente o tema, o gestual, a vestimenta e os objetos que também estão presentes na obra de Jacques-Louis David. Vik intencionalmente os resgatou, dialogando com o Marat de 1793. Mas o espectador do Marat Sebastião também perceberá as nuances que o individualiza e o novo sentido e discurso produzido por Vik Muniz.

A obra de David é uma das mais conhecidas do mundo. É uma pintura clássica à óleo, de inspiração pictórica barroca que presta uma homenagem a Jean Paul Marat (1743-1793), morto em sua banheira. Marat era médico, filósofo, cientista e um dos líderes da Revolução Francesa ao lado de Robespierre e Danton. Lutou ativamente por reformas que garantissem direitos ao povo. Foi esfaqueado por Charlotte Corday quando trabalhava e se banhava aliviando as dores causadas por uma crônica doença de pele. A intenção explicita do artista era enaltecer e tornar Marat um herói nacional. Jean Paul Marat foi assassinado por sua militância revolucionária e inspirou Vik Muniz em sua intencionalidade e discurso político que o fez construir o seu Marat Sebastião.

Vik transformou Sebastião Carlos dos Santos - o catador e então presidente da Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho - no seu Marat. Assim como o revolucionário francês, Tião também é um líder militante e um apreciador de filosofia. “Marat Sebastião” não é uma pintura como a que a inspirou. É uma obra contemporânea, uma fotografia de um trabalho que foi construído com resíduos do Lixão de Jardim Gramacho e em parceria com pessoas que faziam parte desse universo. Essa obra compõe a série Imagens do lixo, realizada pelo artista em 2009, juntamente com os trabalhadores do aterro que atuaram como catadores do material utilizado, como modelos para as fotografias e como realizadores das intervenções artísticas.

O paulistano Vik Muniz é reconhecido mundialmente pelo uso de técnicas inusitadas e materiais não convencionais em seus trabalhos como açúcar e outros materiais orgânicos, restos de demolição e lixo. Seu principal processo criativo consiste em construir imagens a partir dos mais diversos materiais e fotografá-las à distância. O resultado é surpreendente e impactante como visto no “Marat Sebastião”

Vicente José de Oliveira Muniz, conhecido como Vik Muniz, nasceu em São Paulo, no dia 20 de dezembro de 1961. Tornou-se artista plástico após iniciar o curso de Publicidade e migrar para os EUA, no início da década de 80. Um incidente foi o propulsor dessa mudança de trajetória que marcou sua carreira. Vik foi atingido com um tiro na perna ao apartar uma briga de rua e recebeu uma indenização pelo ocorrido. Utilizou esse recurso financeiro para estudar e construir sua carreira artística nos EUA em 1983.

Suas obras são fruto da pós-modernidade e da vida líquida que caracteriza a humanidade atual, segundo o filósofo Zygmunt Bauman. A produção artística de Vik Muniz retrata essa vida líquida na qual tudo é temporário e os valores universais tornaram-se substituíveis e fluidos. O consumo e o descarte imperam e o seu maior produto é o lixo. E esse é o elemento central utilizado pelo artista em sua série “Imagens do lixo” que procura dar identidade e valorização a um grupo de pessoas que vive do produto literal do descarte social.

O processo manual de criação e a tiragem limitada de suas fotografias transformam o trabalho de Vik Muniz em um processo artesanal em um contexto contemporâneo marcado pela produção industrial e em série.

O tema da morte retratado nas duas obras que dialogam entre si é problematizado por Vik Muniz a partir do lixo. O que é lixo pode ser reciclado; o que é morte pode se tornar vida. O lixo vira arte nas mãos de Vik, assim como pode dar sobrevivência aos catadores.

A morte de Marat de David é parodiada em “Marat Sebastião” de Vik Muniz, dando identidade à profissão de catadores e aos indivíduos desse grupo social. Ao partir da referência na obra do século XVIII, Vik elaborou novos sentidos e discursos. Demonstrou que o lixo pode virar Arte e que aquilo que parecia morto pode renascer, assim como os sonhos e a vida da população de Jardim Gramacho.

Notas

1Foucault, M. A ordem do discurso, 1995.