Photographs are perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern. Photographs really are experience captured, and the camera is the ideal arm of consciousness in its acquisitive mood.
(Susan Sontag)
A partir de 27 de janeiro, a galeria In The Pink (Loulé-Portugal) traz, pela primeira vez ao país, uma exposição solo da fotógrafa Vee Speers. Fashioned from Nature surge de um desafio lançado pelo V&A Museum, em Londres. Como falar do impacto da moda no planeta? De que forma a natureza é afetada pela produção contínua que alimenta um mercado mundial? Através dos seus já icónicos retratos em que a fantasia e a realidade se conjugam, Speers tece um comentário ao mesmo tempo ácido e sublime sobre a relação do humano com o ambiente que o cerca. O seu trabalho é um exercício paradoxal que busca o equilíbrio entre a imagem que revela e oculta ao mesmo tempo, entre o retrato de moda e a fantasia desmedida, entre a imobilidade da fotografia e a narrativa que brota de cada imagem única.
Numa das primeiras cenas do filme Le Fantôme de la liberté (1974), de Luis Buñuel, um homem com ar duvidoso mostra a duas meninas uma série de fotos. Mais tarde descobrimos que as fotos, consideradas escandalosas pelos pais, não eram pornográficas, mas simplesmente fotos de monumentos de Paris. No contexto do filme, as imagens da Paris napoleónica eram tão ou mais perigosas que imagens de corpos nus. O que me interessa desta passagem é a ideia da imagem fotográfica como algo capaz de provocar danos, de seduzir ou de perverter.
Em 1977, Susan Sontag publicou um conjunto de ensaios sobre fotografia e, para ela, a câmara era equivalente a uma arma – capaz de violentar, ou de fazer mal, ao retratado pela sua capacidade de captar, e de congelar, um esgar, um sorriso, um olhar mais ou menos esquivo, pela sua capacidade de revelação. O fotógrafo como que se apropria da coisa fotografada e estabelece assim uma relação de poder sobre a imagem.
Não nos podemos esquecer de que a leitura de Sontag recaía sobre obras de artistas como Diane Arbus ou Richard Avedon, grandes retratistas de universos que podem ser paradoxais, mas que se encontram num ponto: suas fotos, sejam os freaks de Arbus ou as modelos de Avedon, são extremamente reveladoras, quase pornográficas, não pelo que mostram, mas pelo que deixam emergir. Cada rosto diz demasiado de si mesmo, expõe-se em completa confiança, entrega-se ao artista. Talvez como os modelos de Goya, no passado, ou, mais tarde, os retratos de Manet.
Vee Speers é uma fotógrafa australiana, baseada em Paris, em cuja obra podemos entrever Avedon e também Arbus, ou mesmo Goya. Sua especialidade – os retratos – trazem-nos rostos e corpos diversos, isolados, destacados do mundo, muitos a olharem para nós, desafiadores, outros ocultados por máscaras, físicas ou digitais. Todos a querer dizer-nos quase o mesmo, a gritarem a sua especularidade, representando, simultaneamente, um rosto e uma ideia, cada um universal a sua maneira.
Sontag disse que “The subjects of Arbus’s photographs are all members of the same family, inhabitants of a single village”, referindo-se aos Estados Unidos como sendo esta single village. Os sujeitos das fotografias de Speers fazem parte de uma vila mais alargada – o mundo globalizado e impessoal, singular e múltiplo, diferente e quase sempre o mesmo. Na série Immortal, de 2010, a artista retrata jovens modelos em poses em que aparecem de peito aberto, desafiadores, mas, na maior parte das fotos, estão com os ombros encolhidos, ou as mãos sobre o peito, numa mistura de displicência e recato, mas sobretudo de abandono, de solidão e de receio. O cenário escolhido é um misto de génese e apocalipse – o começo e o fim, um motu perpétuo. As imagens aparentam excessiva pós-produção, são quase artificiais, como avatares que permanecem para além do corpo que lhe deu origem, como imagens que subsistem mesmo que os corpos pereçam.
Uma das experiências feitas por Speers foi a de convidar pessoas a usarem máscaras antigas, muitas delas disformes, bizarras, e fotografá-las com a câmara do seu telemóvel, dando assim um ar mais casual e espontâneo à sessão que decorria durante um jantar.
My masks are full of imperfections just like a human face, so they seem to fuse with the person wearing them. The fixed and frozen expression poised on a human form is at once disturbing and fascinating. The body language suddenly takes on more importance with the face hidden, and every angle seems to reveal a different aspect of the mask. The two elements become one.
Em Câmara Clara, Roland Barthes afirma que a pose revela mais do que esconde. Que, quando posamos para uma fotografia, deixamos que algo de verdadeiramente nosso, de verdadeiramente íntimo, sobressaia. Talvez por isso, Sontag comparasse a câmara a uma arma que, quando apontada a cada um de nós, é capaz de remexer em camadas profundas. Mas não é qualquer fotógrafo que consegue executar de forma precisa este gesto – o da autêntica revelação. Speers é uma artista que trabalha com fotografia de moda, mas é, antes de tudo, uma retratista que segue uma já secular tradição de pintores e de fotógrafos, capazes de transformar o quotidiano num universo fantástico e de fazer, ao mesmo tempo, o processo inverso, tornar fantástica cada foto, mesmo a mais vulgar, a mais quotidiana ou aparentemente banal.