Em um feito inédito que sacudiu o mundo da arte, a renomada casa de leilões Sotheby's arrematou por mais de seis milhões de reais um retrato do matemático Alan Turing, pintado pela robô artista Ai-Da. A venda, ocorrida em novembro de 2024, colocou em evidência a crescente interseção entre arte e inteligência artificial, celebrando a vida do pai da computação moderna.
Embora o uso de inteligência artificial na criação de obras de arte não seja algo novo, chamou a atenção o valor alcançado pela venda e o espetáculo midiático criado entorno da aquisição da pintura. O feito inédito coloca em destaque o avanço da inteligência artificial na criação artística e levanta questionamentos sobre o futuro do mercado de arte em um mundo cada vez mais digital.
Há décadas, artistas programam algoritmos para criar imagens, sons e textos. Mas então, o que torna a obra de Ai-Da uma novidade? A novidade não está no seu processo criativo, mas no espetáculo cuidadosamente construído ao seu redor. A Sotheby’s e a equipe de Ai-Da transformaram a venda em um evento de grande apelo, promovendo a ideia de uma “revolução artística” feita por uma robô humanoide.
Desenvolvida por Aidan Meller, um galerista britânico, Ai-Da foi projetada para ter feições humanas, o que, de uma forma ou de outra, provoca empatia e cria uma conexão visual, personificada, diferente da ideia abstrata de “feito por uma inteligência artificial”. Além disso, a robô-humanoide foi fotografada ao lado do retrato de Turing, quase como uma artista em sua própria sessão de fotos promocionais.
A personificação de Ai-Da não é minimamente uma decisão técnica, mas sim uma estratégia de marketing que transforma um leilão em um show midiático, buscando cativar o público e gerar manchetes. Além disso, o próprio título da obra, AI God: Portrait of Alan Turing, é altamente didático, o que facilita a compreensão do público sobre o conteúdo da obra, amplificando ainda mais sua narrativa sensacionalista.
Outro ponto fundamental para entendermos o “fenômeno Ai-da” diz respeito ao valor da obra atingir mais de seis milhões de reais. Uma venda desse porte pode fazer o público supor que há algo inédito e revolucionário nessa criação.
No entanto, se analisarmos criticamente a aquisição, veremos que o valor de mercado de uma obra de arte não é, necessariamente, um reflexo direto de seu valor artístico. Em muitos casos, o preço de uma obra de arte reflete tendências momentâneas - como foi o caso das NFTs do Neymar, você se lembra? Além disso a aura de exclusividade criada em torno do objeto e, no caso de Ai-Da, o espetáculo da “artista robô” também são fatores determinantes em seu preço.
O “caso Ai-da” deixa claro que o mercado de arte é sensível ao sensacionalismo, e o valor elevado de certas obras deve ser encarado com ceticismo. Muitas vezes obras são promovidas como tendência, algo único e sem precedentes, quando, na verdade, já são prática consolidada.
Agora que já temos uma perspectiva crítica sobre o “caso Ai-da”, podemos aproveita a ocasião para refletirmos sobre assuntos cada vez mais urgentes na arte contemporânea: pode uma inteligência artificial produzir arte? Quais são os limites e as implicações desse processo? E como o avanço da IA está transformando o mercado de arte e a própria ideia de autoria?
Historicamente, o conceito de “arte” evoluiu junto à sociedade e sua forma de interpretar o mundo. A arte é tanto produto quanto processo, uma fusão de técnica, emoção e intenção. O que torna algo “arte” é frequentemente determinado pela intenção do criador, pelo contexto histórico e pelo impacto social da obra. Obras de arte tradicionais expressam uma visão singular de seu criador, uma mensagem que se espera comunicar algo autêntico sobre a condição humana.
Para algumas pessoas, o retrato de Turing criado por Ai-Da tem seu valor artístico questionável, pois seu processo é visto como algo técnico e automatizado, desprovido de qualquer subjetividade e poética – considerados fundamentais para uma obra de arte de valor.
No entanto, devemos ter claro que, assim como todas as outras obras de arte produzidas por inteligências artificial, a Ai-Da foi programada para responder a partir das escolhas de seus criadores, principalmente a figura do galerista Aidan Meller. Por essa razão, é inegável que há uma presença humana orientando cada passo do processo, assim como a “intenção” criativa dos seres humanos nunca está ausente; ela apenas assume uma forma compartilhada, com pessoas desempenhando o papel de “arquiteto da arte”.
A questão da criação artística por IA se insere num debate crescente sobre a capacidade de algoritmos e robôs de realmente “criar” algo novo. Algumas IAs são programadas para captar informações visuais e reproduzí-las por meio de suas próprias variações estilísticas. No entanto, ainda assim, o que foi captado visualmente é fruto do trabalho humano, assim como a escolha do que deve ou não ser captado, depende da programação de um humano.
Para muitos estudiosos e críticos, a criatividade e a arte estão interligadas à experiência humana. A arte surge de um processo de observação, intuição e emoção. A IA, por outro lado, opera com base em dados e algoritmos. No entanto, a definição de criatividade pode estar mudando, especialmente quando pensamos na IA como uma ferramenta colaborativa.
No processo criativo de Ai-Da, por exemplo, há uma combinação de dados e técnicas que resulta em algo visualmente inovador, mas, ao mesmo tempo há a intervenção humana em cada uma de suas etapas. Ou seja, mesmo que o robô gere esboços e decida suas combinações, é o programador humano que determina os parâmetros e os ajustes, imbuindo a obra de uma subjetividade velada.
A IA, portanto, pode “fazer arte”, mesmo que se reforce a ideia de que essa arte só se realiza com a influência da subjetividade humana.
No processo criativo de uma obra de arte, o artista não é apenas um executor, mas alguém que imprime sua identidade e suas percepções. A IA, por mais autônoma que seja, segue um conjunto de instruções e dados fornecidos pelos humanos que a projetaram. Assim, a autoria passa a ser uma noção mais fragmentada: uma robô como Ai-Da não é a autora do retrato de Alan Turing de forma isolada, mas sim uma “coautora” que trabalha em um sistema de colaboração com seus programadores.
A despersonalização da autoria ocorre porque a intenção e a autonomia, elementos tradicionalmente valorizados na criação artística, são subvertidos. Em vez de uma assinatura individual, temos uma obra onde a linha entre artista e ferramenta se dilui. Talvez, no futuro, precisemos redefinir o conceito de autoria para incluir entidades digitais, mas a arte produzida por IA continua sendo, no seu cerne, uma expressão das escolhas de programadores, designers e tecnólogos que dão forma ao processo.
Por enquanto, as barreiras para que a IA seja reconhecida como autora de uma obra de arte ainda são significativas. A autoria artística envolve a capacidade de transmitir uma visão única do mundo, ancorada em uma vivência que supera cálculos e estatísticas. Além disso, a falta de subjetividade, a dependência de dados preexistentes e a ausência de uma “consciência” limitam a IA de ter uma expressão realmente autônoma.
Do ponto de vista legal, os direitos de autoria também entram em jogo. Em muitos países, o status de autor para uma IA ainda é inexistente, e a proteção de direitos autorais depende do papel humano no processo. Na ausência de uma entidade consciente, o criador original dos parâmetros e das instruções do algoritmo é quem detém os direitos, pois é ele quem direciona a criação. Portanto, ainda que a obra de Ai-Da desafie nossa compreensão do processo criativo, ela não transforma a IA em uma criadora independente.
A introdução de obras de IA no mercado de arte movimenta cifras expressivas e redefine as fronteiras da valorização da arte. Os leilões de peças como o retrato de Turing, mostram que o mercado está aberto a incorporar criações digitais e “não-humanas”. A arte criada por IA vem ocupando um espaço crescente, atraindo colecionadores e investidores curiosos sobre o futuro do mercado e as novas estéticas.
O mercado precisa equilibrar essa febre especulativa com a apreciação da arte como uma experiência cultural. Como já ocorre em outras frentes, é fundamental questionar se as vendas de arte por IA são um reflexo de seu valor artístico ou apenas um resultado de tendências mercadológicas e tecnológicas.
A relação entre criatividade humana e IA representa uma nova etapa na produção de obras de arte. A IA, como ferramenta, amplia as capacidades de artistas, permitindo novas colaborações e expandindo os limites da criatividade tradicional. E, nesse sentido, a colaboração com IA faz com que o artista se transforme mais em um curador de processos do que em um criador autônomo.
Além disso, a IA questiona a originalidade – já que suas criações são baseadas em dados preexistentes. Se a criatividade é a capacidade de gerar algo novo, até que ponto uma IA é realmente criativa se depende de bancos de dados? No entanto, o uso de técnicas generativas permitem que a IA explore novas formas de expressão e estética, que combinadas à curadoria humana, tornam-se uma nova forma de arte.
A incorporação da IA na produção de arte sinaliza transformações ainda mais profundas no futuro. À medida que a tecnologia se desenvolve, artistas e programadores serão capazes de explorar estilos e métodos impossíveis para uma mente exclusivamente humana. De certa maneira, a IA pode democratizar ferramentas de criação, tornando possível que qualquer pessoa, mesmo sem formação artística tradicional, possa experimentar a produção de obras visuais e sonoras.
No entanto, essas novas ferramentas trazem também desafios. A autoria e a propriedade intelectual tornar-se-ão conceitos mais complexos. A transparência e o controle sobre os processos criativos de IA, e o papel das instituições de arte e leilões no espetáculo dessas vendas, serão fundamentais para garantir que a IA enriqueça a criação artística em vez de diluir sua autenticidade.