Heidegger, na Origem da obra de arte, questiona o que transforma uma coisa numa obra de arte. Entendendo coisa como sendo a materialidade aparente dos objetos no e do mundo. Para o filósofo, a coisa existe antes e depois da obra – o artista e a obra não podem evadir-se da materialidade que o(s) constitui. Em dado momento, ele afirma: “Uma simples coisa é, por exemplo, este bloco de granito. É duro, pesado, extenso, maciço, informe, rude, colorido, ora baço, ora brilhante”. O que torna um pedaço de granito algo único? O que pode transformá-lo numa obra de arte? E de que forma a arte traz consigo os elementos fundamentais que são constituintes do bloco de granito? A arte, ao longo da História, procurou disfarçar, alterar, refazer as coisas em si para que aquilo que saísse da mão dos artistas pudessem ser não um objeto do mundo, mas algo fora dele, uma representação, adaptação ou reinvenção. Apenas no início do séc. XX, através das provocações de Duchamp, ou mais tardiamente, no alvorecer da Arte Conceptual e do Minimalismo que os artistas deixaram que os objetos aparecessem em sua inteireza na obra. Muitas vezes, a obra e a coisa/objeto eram indivisíveis, e só pelo facto de o artista chamar de arte a um bloco de granito fazia que a sua significação fosse alterada e o bloco subsumisse na obra de arte, adquirindo um novo lugar.
Aquilo a que Heidegger chama de “coisa” está relacionada, intimamente, ao espaço – “Pois atrás do espaço, assim parece, já não existe nada a que pudesse ser reconduzido. Diante dele, não existe desvio possível para uma outra coisa”. O espaço é o lugar de reconhecimento, e de angústia, pois revela a limitação da linguagem e a apreensão humanas – o ponto de encontro com a materialidade, ou superfície, que nem sempre é legível ou transformável em significação.
As obras que Luís Marques e Rúben Gonçalves prepararam para esta exposição fizeram-me pensar nas questões que o filósofo nos deixou. Também me fizeram pensar nas experiências de artistas como Richard Long, Donald Judd, Michael Heizer, cujas obras aconteciam no espaço e dele se constituíam, das suas rugosidades, materiais, idiossincrasias. Constituíam-se ainda da luz que ora habitava ora desaparecia, criando zonas instáveis, efémeras, propositadamente não resolvidas.
Home/House lança um desafio ao espectador que é colocado diante de obras cuja ambiguidade formal (pintura, escultura, instalação) torna ainda mais complexa a interpretação do que tem diante de si. E do que habita o espaço da galeria – que é tomada pelos artistas e transformada num espaço, no sentido hedeiggeriano do termo – o lugar de onde não se pode fugir, o lugar do enfrentamento com o real ou com as nossas limitações de linguagem ou de interpretação. No caso desta exposição, é o lugar onde a arte acontece. A ideia de habitar o espaço foi também uma maneira que os artistas encontraram para demonstrar a validade de uma metáfora. A galeria é uma casa, será um lar possível? E quem tem acesso ao espaço/casa/lar? Quem nele habita?
As obras que Luís Marques nos traz dão continuidade aos trabalhos que o caracterizam como artista – trazem a sua assinatura. Uma assinatura que se evidencia na escolha dos materiais – rudimentares, naturais, restos de coisas – e na metodologia da sua constituição. O artista se reconhece como fazedor, cria com suas próprias mãos os tijolos que dão forma às esculturas/instalações que nos traz em Home/House. Este gesto remete-nos à ideia de tradição, de manufactura, de um passado que foi substituído pelo betão e que só resiste, de maneira discreta e quase invisível, em construções perdidas pelo Algarve, região que foi esventrada pelo rápido e voraz crescimento imobiliário.
Há ainda uma pintura, que se apresenta como uma obra tridimensional, acentuando a ambiguidade daquilo que representa – uma paisagem talvez, mas uma paisagem que subsome no traço mais abstrato, uma paisagem que emerge, como uma ideia, uma sombra. Uma imagem do passado no presente, afirmando assim o seu lugar noutra paisagem que a subjugou.
Rúben Gonçalves concentra as suas obras também no espaço, mas com um acento na geografia humana, ou na sua ausência. As obras desta exposição – uma instalação, uma escultura e uma pintura – usam o espaço da galeria como um lugar de reflexão sobre a habitação, ou a falta dela, sobre a exclusão das pessoas do que deveria ser um lar, o Algarve, convertido no paraíso de casas de veraneio. O artista convoca a arquitetura evidenciando as suas nuances e o seu caráter simbólico. Uma casa é sempre mais que uma casa, uma edificação não é apenas feita de pedras – há sempre algo que nos escapa ou que nela acrescentamos através dos sentidos que damos aos espaços. Sejam eles sociais, políticos, afetivos ou artísticos. A galeria, casa das artes, abriga uma casa dentro de si – pronta para ser percorrida, acentuando assim o jogo da arte, entre a simulação e a realidade, tornando artística algumas das questões que Heidegger nos faz na sua obra.
Além das obras criadas por Luís Marques e Rúben Gonçalves, o espectador é confrontado com uma peça que, não sendo de nenhum deles, torna-se uma obra de ambos. Aqui, os artistas/curadores fizeram uma escolha dentro do acervo do Museu Municipal de Faro, de um objeto que fosse icónico, que revelasse uma ligação intrínseca ao lugar. A escolha recaiu sobre um tríptico em azulejos que traz a imagem de Santo António no centro. Quer a imagem do santo, e a sua própria significação, quer o azulejo são elementos presentes em muitas casas tradicionais, proporcionando, muitas vezes, a transformação de casa em lar, ao revelar as escolhas, os gostos, as crenças de quem nelas habita.
Entre as técnicas tradicionais e as escolhas contemporâneas, os artistas construíram uma exposição que leva o espectador a sair da sua função, muitas vezes passiva, para entrar num jogo que faz com que ele encare o espaço – o lugar da angústia, aquele do qual já não se consegue fazer ilações, pois é um existente, e a sua materialidade e dureza obrigam a cada um de nós a ver, através da arte e pela arte, o possível lugar do real. O lugar onde a vida acontece.