Chefs de cozinha dependem de substâncias (matérias-primas) e ingredientes de origem vegetal, animal, ou mesmo mineral, por forma a exercer o seu trabalho. São as suas palavras. A sua oficina. Dependem destes para ilustrar o seu mundo. Há vezes em que o seu valor intrínseco é inevitável. Afinal de contas, o Homem não se sustenta a si próprio.
Em muitos restaurantes europeus, nomeadamente com estrela(s) Michellin, os chefs dispõem, ou vêm-se obrigados a dispor nos seus menus, pratos com caviar de Beluga (extraído da espécie Huso huso), lavagante azul (Homarus gammarus), foie gras, boletos (Boletus edulis), ou ainda salmonetes (Mullus surmuletus), só para dar alguns exemplos.
Nestes restaurantes, ter à disposição este tipo de iguarias significa, em primeira mão, satisfazer os seus clientes. Assim, trabalham segundo constantes culinárias bastante previsíveis, algo a que podemos chamar seleção pré-estabelecida pelo cânone, isto é, a type of best-off. Por outras palavras, estamos diante de menus clássicos e chefs que não gostam de arriscar, ou que não podem arriscar. Por outro lado, este tipo de iguarias garante segurança aos clientes.
Pratos difíceis de vender que utilizam partes menos nobres de animais, por exemplo, de mamíferos, de certos peixes, ou gastrópodes terrestres, como é o caso dos caracóis e das caracoletas, ou simplesmente ingredientes mais humildes, donde o nabo será um bom exemplo, exercem sobre alguns chefs um fascínio maior. Para estes, a substância, a matéria, é algo de fundamental. Permite-lhes exercitar melhor as suas capacidades da imaginação, conferido a este exercício uma prova mais intensa e desafiante. Na verdade, a substância é aquilo que lhes permite sonhar.
Partir dum elemento deste tipo, e trabalhá-lo expondo-o ao mundo das ideias (já agora dizer que tal pode ser/estar independente do sabor, que, até há bem pouco tempo seria o dado mais relevante da equação), ou simplesmente revestindo-o de uma nova configuração/sensação, parece dar maior satisfação/recompensa a estes chefs.
Sim, é verdade, há chefs que são verdadeiros funâmbulos, que gostam de trabalhar sob a corda muito esticada, em que o seu corpo e os sentidos são postos à prova consoante cada movimento. São os chamados chefs criativos, aqueles que não seguem os caminhos já traçados, aqueles que muitas vezes dizem partir do zero (se bem que não haja ninguém que parta do zero — o zero absoluto é uma atividade perigosa). Aparte isso, estes chefs, há que dizê-lo, têm pelo na venta e sangue na guelra. Isso ninguém lhes tira!
Muitas vezes, o grande desafio dos chefs é despertar emoções no comensal, muitas vezes a partir do “novo”. Despertar a curiosidade e dar a mostrar a riqueza histórico-sensorial dos alimentos é uma obrigação dos chefs.
No caso dos elementos novos, o efeito “estranheza” pode ter um papel preponderante. Para muitos a “estranheza” é sedutora. Os chefs podem incorporar estes elementos estranhos nos menus de modo a provocar no comensal o efeito de novidade sensorial, reações desconcertantes, às quais se pode ouvir comentários do tipo: “esta cozinha é esquisita”.
Despertar o comensal para um novo sabor é algo muito apetecível para um chef porque obriga o comensal a aceitar aquilo que ele pensa, e por outro lado, a confiar nele, no seu gosto. O papel do comensal neste caso é “deixar-se levar” através da experiência. Aceitar a viagem é o seu grande desafio, mesmo que, por vezes, o que se apresenta seja ”difícil”, seja aparentemente “desagradável”, ou não tão bom. Há, neste caso, uma relação de proximidade, uma relação recíproca entre aquele que executa, o fazedor, e aquele que experimenta, ou seja, aquele que recebe e sente, vivencia as coisas. No entanto, o segredo é mesmo confiar no chef, deixar-se levar.
Alguns destes elementos incluem vísceras, líquidos seminais, camarões vivos, insetos variados como formigas do tipo saúva, lagartas e borboletas, ou ainda moluscos esquisitos de textura mole, ou ervas aromáticas capazes de nos conferirem sensações inusitadas, fora dos nossos consensos sensoriais.
A aceitação sensorial pode ser um grande desafio para o ser humano. Como dito anteriormente, o segredo é ter confiança no próprio chef, capacitá-lo, confiando-nos, para que nos guie através da sua capacidade de transformar algo numa coisa completamente nova, pois ele é o mágico do jardim. Para seguirmos em frente.
Mas, a pergunta que se coloca é: o que leva os chefs a trabalhar com tais elementos? Será por uma questão de teimosia? De gostar de impor ao recetor os seus gostos e as suas memórias? Ou, mero pretexto para atrair as atenções? Marcar a sua presença por forma a conquistar um público sedento de espetáculo? Talvez tudo isso, uma parte disso, mas não só. Por vezes, estes elementos estranhos são usados para quebrar eventuais formalidades durante as refeições, promover uma inquietação, ou simplesmente uma nova experiência sensorial.
Sai do óbvio. Para um espírito inconformista trata-se de um elemento imprescindível, de um jogo que precisa de ser jogado. Porque queiramos ou não, é importante causar impacto, provocar um estranhamento, exercer o ato do inolvidável. Constar que essa presença é necessária, e faz bem. Não era o Fernando Pessoa que dizia “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”?
Entre muitas coisas, a cozinha serve para responder ao mundo, mostrar-nos quem somos. Expor-nos aos nossos medos, às nossas fraquezas, aos nossos desejos. A cozinha serve para isso, para descobrir-nos. Para comunicarmos.
Pelo seu mistério, pelo seu valor, sejamos mais humanos.