O alho é cultivado há cerca de 6 000 anos. Plínio, o Velho (23 d.C-79 d.C), na Historia Naturalis, descreve uma variedade conhecida p’ los cartagineses, de seu nome ulpicum, proveniente do Chipre. Também o pai da medicina, Hipócrates (ca. 460 a.C.-370 a.C.), no Regime, enumera-o como um dos ingredientes essenciais da boa cozinha grega. Durante a Idade Média era conhecido como um remédio para todos os males. No Alentejo, ainda se diz que é remédio “para tudo”. Em 1858, Pasteur comprova as suas propriedades antibacterianas. Com efeito, foi usado como antisséptico durante a I e II Guerra Mundial para evitar casos de gangrena.
O alho Darwinista – por que se usa temperos?
Segundo estudos de Jennifer Billing e Paul W. Sherman, os temperos desempenharam um papel fundamental na seleção natural da espécie humana. Isso se deve à sua fitoquímica (de fito-=planta). Eles, os temperos, são muito ricos em substâncias bioativas capazes de eliminar micro-organismos, inibir o seu crescimento ou mesmo potenciar a ação de outros compostos.
Os autores analisaram 4578 receitas à base de carne correspondentes a 36 países. Foram registados 43 temperos no total. Começaram por observar que nalgumas receitas o número de temperos era superior, e que em alguns casos havia desproporções bastante acentuadas.
Os países situados entre o Trópico de Câncer (23°26′13.2″N) e o de Capricórnio (23°26′13.2″S) apresentavam uma média superior de temperos por receita quando comparados com os que se situam entre o Trópico de Câncer e o Círculo Polar Ártico (66°33′46.8″N) ou entre o Trópico de Capricórnio e o Círculo Polar Antártico (66°33′46.8″S) — parecia que havia uma razão latitudinal para explicar tal facto. Na verdade, os países situados nos primeiros parâmetros latitudinais registam temperaturas médias superiores aos restantes, ou seja, registam temperaturas que se aproximam da zona ótima de desenvolvimento de micro-organismos capazes de provocar doenças. Como dizem os autores: “os temperos sabem bem porque são bons para nós”.
Mas por que motivo se usam misturas de temperos? As misturas são tão comuns que se podem encontrar em praticamente todas as cozinhas do mundo. Em Portugal, pode-se referir o estrugido ou refogado; uma espécie de molho feito à base de azeite, alho, cebola, louro, sal, cravinho, piripíri, salsa e tomate, sendo que por vezes se adiciona colorau. Há ainda a vinha - d´alhos feita à base, claro está, de alho, ao qual se junta vinho branco e, em alguns casos, vinagre, louro e sal. Nas misturas, as ações antimicrobianas são altamente potenciadas, uma vez que se estabelecem sinergias entre os demais compostos presentes nos temperos.
Os dois exemplos anteriormente citados são usados repetidamente na cozinha tradicional portuguesa. Segundo a razão anteriormente descrita, o uso deve-se à questão latitudinal — Portugal está entre os principais países da Europa que registam temperaturas médias anuais elevadas — o estudo registou uma temperatura média anual de 15° C para Portugal.
Uma outra questão se coloca — por que motivo se coloca o alho no princípio, e não no fim? Por exemplo, o alho, a cebola e o alecrim são adicionados logo no início, enquanto a salsa e os coentros são-no no final, ou mesmo já no fim, depois do prato estar pronto. Estas regras temporais (início ou fim) estão relacionadas com a estabilidade termal dos temperos. Os temperos adicionados no início são designados como termo estáveis, e os outros como termo lábeis — tal se explica porque os compostos têm graus diferentes de resistência ao calor.
Há que referir que, em dez temperos, onde se inclui o alho, registou-se uma correlação positiva entre a temperatura média anual e a frequência dos usos. No caso do alho, os dados obtidos permitiram concluir que existe uma relação proporcional entre o uso de alho e o aumento das temperaturas médias anuais.
Apesar do alho ser comumente usado em bastantes receitas (o estudo aponta para 35%), ele é conhecido por ser um tempero pungente, ao ponto de, por vezes apresentar uma reputação negativa, especialmente entre as crianças. Não é de admirar que nos países anglo-saxónicos seja conhecido como stinkweed (erva que tresanda) ou stinking rose (rosa fedorenta).
Segundo Paul Rozin, o gosto por temperos aumenta com a idade, sendo a sua ingestão adotada gradualmente devido à incitação por parte dos mais velhos. Este discurso entre gerações sugere que o seu uso é de alguma forma benéfico, por isso não é de estranhar que o alho possa ser ingerido inteiro, sem tratamento ou sem qualquer outro elemento à mistura, exceto a água — o “dente de alho” pode funcionar como uma espécie de ‘comprimido’, mas isso não é um caso muito comum, pois raramente se consomem temperos desta forma.
Ainda relativamente à pungência, esta deve-se aos seus compostos sulfurosos, que são cerca de três dezenas. Estes compostos, ricos em enxofre (S), são os responsáveis pela notável eficiência antibactericida inicialmente comprovada por Pasteur no século XIX.
Segundo a literatura, a alicina, um composto presente no alho, exibe uma atividade antibacteriana contra uma grande variedade de bactérias gram-positivas e gram-negativas, inclusive estirpes enterotoxigénicas de Escherichia coli. Possui ainda atividade antifúngica, particularmente contra Candida albicans, atividade antiparasítica, incluindo parasitas do intestino humano como por exemplo Entamoeba histolytica e Giardia lamblia e atividade antiviral. O estudo conclui que consumir alho é extremamente benéfico para a saúde. Portanto, comer alho, seja cru, assado, esmagado, entre outros, é, de facto, mesmo eficiente!
Do creme pálido a azul e verde
Fenómenos que causam interesse e espanto estão em toda a parte, e a cozinha não é exceção – porque, como disse Heráclito, “Aqui também os deuses estão presentes”. Hoje, a ciência permite compreender e dominar melhor estes fenómenos culinários. É o caso da descoloração que ocorre nos tecidos de algumas plantas do género Allium, estudadas desde 1958. Quando se processa alho (A. Sativum) ou cebola (A. Cepa) é comum formarem-se pigmentos com diversas cores (e.g. verdes, azuis-esverdeados, azuis, rosas e vermelhos).
As espécies do género Allium (à exceção de Allium giganteum) partilham o mesmo mecanismo de pigmentação. Os estudos dos últimos 50 anos têm demonstrado que o processo é constituído por multietapas. Tudo começa quando a célula é danificada, por exemplo, através de um corte. A primeira etapa corresponde a uma reação enzimática extremamente rápida e, a segunda, a uma reação não-enzimática muito lenta. Entre os produtos destas reações estão os pigmentos que vão causar a descoloração.
No entanto, este tipo de pigmentação pode ser indesejável em alguns casos, mas por vezes o “defeito” pode ser comercialmente explorado. É o caso dos alhos Laba típicos do norte da China.
Estes alhos Laba, que são pickles, são comummente servidos com dumplings para celebrar o ano-novo chinês. A sua cor é bastante atrativa e os chineses acreditam que lhes trazem bons auspícios. Os bolbos inteiros são sujeitos a uma salmoura durante largos meses. Posteriormente são pelados e postos numa solução de vinagre durante pelo menos uma semana. A formação do pigmento verde no alho Laba deve-se à presença do ácido acético que provém do vinagre e da enzima alinase.
O ácido acético destrói as estruturas internas da célula. De seguida, compostos que estavam em compartimentos diferentes das células do alho vão reagir uns com os outros para formar compostos denominados pirróis, e quando estes se ligam de uma maneira específica formam compostos bastante idênticos à estrutura da clorofila. De facto, a cor verde do alho Laba resulta da combinação de dois pigmentos: um azul (590 nm) e um amarelo (440 nm).
Mas, por vezes há alhos que mesmo quando são sujeitos a uma solução de vinagre durante muitos dias não chegam a atingir a cor verde. Tal acontece sobretudo por serem alhos jovens, os quais são pobres nos precursores químicos necessários para que as reações referidas ocorram. De notar que os vários pigmentos formados não oferecem qualquer risco para a saúde humana.
O rei dos condimentos
O alho é, e sempre foi um ingrediente essencial na cozinha egípcia, grega, judaica, romana e europeia em geral. Por isso, não é de estranhar que seja o rei dos condimentos. Mas, ainda assim, houve vezes que foi visto como um ingrediente nocivo — diz-se que tem a capacidade de desqualificar o que acompanha, o que é uma verdadeira heresia, diga-se!
Na verdade, ele sofre de uma injustiça flagrante, na medida em que exige um uso particular e bastante delicado, pois é um produto com um carácter forte, pungente, que necessita de ser convenientemente tratado. Sugere-se o seu branqueamento de modo a poder suavizá-lo, por um mecanismo idêntico ao descrito acima. Dessa forma, o alho revelará melhor o carácter das preparações, uma vez que se procedeu à neutralização da sua tão particular pungência dando-lhe um carácter mais doce e frutado.
Referências
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Precursors Involved in Onion Pinking and Garlic Greening, J. Agric. Food Chem., vol. 52, no. 16, pp. 5089–5094.
Sherman, P. W., & Billing, J., (1998). Antimicrobial Functions of Spices: Why Some Like It Hot, 1998 e Darwinian gastronomy: Why we use spices, 1999.
Sherman, P. W. & Billing, J., (1999). Darwinian gastronomy: Why we use spices,
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This, H., (2014). Solution to blue garlic challenge, Anal. Bioanal. Chem., no. 406, pp.
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