Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

(Fernando Pessoa. 1927-1928)

caneja” e “infundice” são dois substantivos que se colam à receita mais estranha de Portugal. O primeiro substantivo, “caneja”, talvez derive do latim canicula, -ae, que significa “cadela pequena”. Já o segundo, “infundice”, de infundir + -ice, designa uma “barrela feita de urina em que se demolhava a roupa muito suja, para depois se lavar mais facilmente”. No caso de “barrela”, esta designa uma “solução alcalina usada para clarear roupa suja” ou um “ato de purificar*”. Estranho? Talvez não. Venha daí!

Origem

Como bem sabemos os pescadores sempre foram exímios na arte de preparar e confecionar pratos de peixe, e, a caneja d’ infundice é prova viva disso. A estória conta que, depois de pescar um belo exemplar de caneja (também conhecido como câneja ou cação-liso), um peixe da subclasse dos elasmobrânquios (peixes que englobam os tubarões e as raias), um desses homens do mar preparou-a como ditam as leis; amanhando-a e lavando-a bem com água do mar. Depois embrulhou-a muito bem em papel de jornal e foi para casa, deixando-a esquecida no fundo da embarcação. Conta-se que passados alguns dias ao desembrulhar o jornal observou o corpo do peixe com muita atenção, e logo notou que o cheiro era bastante intenso.

Intrigado decide cozer o peixe. Apesar do cheiro que este emanava as primeiras garfadas souberam-lhe bem. Posteriormente optou por juntar-lhe batatas cozidas regadas com azeite, e aí sim, comeu-a toda, e ainda a “maridou” com um belo copo de tinto. Motivado pela descoberta o pescador disse a um amigo e esse amigo a outro amigo, e assim sucessivamente, não demorando muito até que toda a população soubesse da dita receita de caneja. A população era a da Ericeira, uma pequena vila do Município de Mafra, a 50 km de Lisboa. Nascia assim a estranha e rara receita da caneja d’ infundice a que os jagozes (“gente do mar” nascida na vila da Ericeira) dizem ser sua por direito próprio.

Modus operandi

A verdadeira caneja d’ infundice é feita com cação-liso (Mustelus mustelus); um peixe elasmobrânquio medindo entre 70-80 cm (conforme o sexo do animal), podendo atingir cerca de 25 kg, com uma ampla distribuição geográfica desde o Atlântico Nordeste, passando por todo o Mediterrâneo, Atlântico Centro-Este e Atlântico Sudeste até ao cabo Oriental da África do Sul. No entanto, na falta de cação-liso pode-se usar outros elasmobrânquios como por exemplo pata-roxa (Scyliorhinus canicula), tintureira (Prionace glauca), litão (Galeus melastomus), ou galhudo-malhado (Squalus acanthias), espécies abundantes na costa portuguesa.

Quanto à preparação da caneja d’ infundice começa-se por retirar a cabeça e as barbatanas. Depois o peixe é estripado, amanhado e lavado com água do mar. De seguida o peixe é cortado às postas mais ou menos largas desde o dorso até à pele da barriga, sendo que não se corta as postas por completo, deixando uma pequena farripa de carne preso ao restante corpo. De seguida embrulham-se as postas com trapos de algodão por forma a se absorver bem a exsudação proveniente do corpo do peixe. Depois envolve-se bem em serapilheira e coloca-se ao abrigo da luz durante cinco dias. Passada a fase de curtição é desembrulhado e exposto à luz solar durante breves minutos. Nesta altura do processo já se nota o cheiro intenso a amoníaco.

Posteriormente o peixe é embrulhado com novos panos sendo que passados cerca de cinco dias de curtição o peixe está pronto a ser confecionado. A variação da curtição pode variar entre cinco (5) a vinte e um dias (21). Depois, é uma questão de se cozer a caneja e as batatas para acompanhar.

Ao longo do tempo os mestres jagozes constaram que: a) se porventura as batatas forem cozidas com o peixe ficam escuras; b) quando se rega o peixe com azeite este último torna-se esbranquiçado, com textura leitosa; c) quando se rega a caneja d’ infundice e as batatas tudo fica irreconhecível ao palato (?); e por fim, d) a caneja d’ infundice faz adoçar o vinho tornando-o adamado.

Infundices semelhantes

Na gastronomia, como noutros domínios da nossa vida, não deve haver lugar para o preconceito, antes para a curiosidade e a abertura de espírito, quer dizer, do paladar.

(David Lopes Ramos, caneja d' infundice, petisco estranho e raro, Abril de 2010, in Tempo Livre n° 214)

De forma geral os Portugueses não estão habituados ao gosto básico. Em grande parte, a sua comida é de carácter ácido. É claro que existe exceções, mas são raras. Talvez o exemplo mais comum seja o uso de bicarbonato de sódio na cozedura de legumes verdes (e.g. feijão-verde, brócolos e favas) de modo a fixar a clorofila, ou ainda empregue para amaciar leguminosas.

Ao invés da região norte da península escandinava ou da Islândia, em Portugal não existe um prato propriamente alcalino. Nesta região do mundo podemos encontrar exemplos como o lutefisk, uma espécie de bacalhau curado no qual o peixe é tratado com soda cáustica, ou ainda o kæstur hákarl, que consiste em carne de tubarão fermentada, com pH entre 10-12. É de notar que nos três casos (caneja d' infundice, lutefisk *e *kæstur hákarl) tais pratos estão reservados a eventos festivos ou ritos masculinos.

Como dito anteriormente o meio alcalino dos dois pratos escandinavos deve-se às marinadas. No entanto, no caso da caneja d' infundice o meio não resulta da adição de uma marinada deste tipo, mas sim de compostos básicos que se formam devido à sua composição e ulterior transformação-decomposição do peixe.

O cheiro amoniacal

Os peixes cartilagíneos (Chondrichthyes), onde se incluem os elasmobrânquios, possuem grandes quantidades de ureia no organismo. Por isso se diz que são ureotélicos.

Caso os peixes cartilagíneos não fossem dotados de osmorregulação (processo que mantém o equilíbrio de fluidos e eletrólitos com o ambiente) estariam constantemente a perder água para o meio exterior. No caso dos elasmobrânquios a osmorregulação é possível porque estes peixes acumulam e retêm ureia nos seus fluidos corpóreos, nomeadamente, no sangue. Como resultado, a concentração de solutos é proporcional aos dois meios; no meio interno do peixe e na água do mar (meio isotónico).

Apesar de não ser uma substância tóxica a ureia confere características únicas à carne dos elasmobrânquios. O seu cheiro é singular e o seu sabor é amargo, ligeiramente salgado, por vezes ácido.

Durante o processo que envolve a preparação da caneja d’ infundice a ureia transforma-se em amoníaco, e é por isso que se diz que exala um cheiro forte. É por isso que se diz entre os jagozes que os dias de infundice correspondem a “graus alcoólicos”.

Há ainda um segundo composto também ele nitrogenado não-proteico que desempenha um papel essencial na osmorregulação dos elasmobrânquios. É o chamado N-óxido de trimetilamina que, após a morte do animal é convertido por bactérias em trimetilamina cujo aroma é fedorento, amoniacal e deveras pungente, próximo do que vulgarmente se designa por “cheiro a peixe”.

A verdade é que, se o peixe não for convenientemente tratado irá ser afetado negativamente no que diz respeito à qualidade da sua carne. Contudo, há características negativas que quando exploradas convenientemente oferecem mais-valias sensório-gustativas. Este parece ser o exemplo da caneja d’ infundice, onde o cheiro que se traduz por amoniacal devido às características fisiológicas do tipo de peixes em questão e dos compostos nitrogenados formados proporciona ao comensal uma sensação atípica.

Caso ainda esteja indeciso quanto à prova da caneja d' infundice são os próprios doutores que afirmam que “limpa tudo”. Há ainda afirmações tão curiosas quando se diz que é uma “droga benigna”. Valerá, pois, a pena experimentar esta iguaria, nem que seja uma única vez, porque como dizia Brillat Savarin: “A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao género humano que a descoberta de uma estrela”. Preparado para tal missão? Desfaça-se de preconceitos e experimente. É que amanhã pode já não subsistir tão bizarra iguaria. De que está à espera?